domingo, 27 de março de 2022

Livro de Banca

Eu devia saber que aquele sorriso da noite, esboçado pela Lua minguante, era tão perigoso e lascivo quanto duma bela dama que entrou no bar naquele instante nesse dia de fins de verão onde rajadas de vento nos lembram o que esta por vir nos meses seguintes. Eu poderia passar por mais um tipo canastrão que vem aqui dia após dia buscando respostas ao vazio de suas almas. Minha caçada era justamente a oposta: estava atrás de dúvidas. Será que a balconista cuspiu no meu drinque? Será que esses três espetinhos são mesmo de carne bovina? Será que hoje é quinta ou sexta? Passou da meia noite, sexta. Menos um questionamento no meu caderno mental.


Seis mesas na diagonal direita de onde estou uma mulher loira, vestido rosa-chá, ombros desnudos olhava fixamente na minha direção. Ou olhava através de mim? A baixa iluminação não dava a mínima das certezas se aquela fixação era para a minha pessoa ou não. Que foda. Pedi outro drinque. Mais um Scott com três pedras de gelo. Tão logo chegou ergui o copo em um brinde. Ela, quase imediatamente, correspondeu ao gesto.


Voltei a olhar em volta. Apesar de ser uma quinta barra sexta feira a casa estava com pouca gente. O pequeno palco não tinha ninguém cantando e a música vinha duma gravação. Era jazz ou blues? Soul talvez.


Essa quase certeza pediu mais uma dose. Novamente o drinque e o brinde correspondido. Afinal, o quê eu estava esperando? Se nesse tempo ela estava sozinha era sinal que estava desacompanhada. Ou tudo isso era parte do experimento social dum parceiro voyeur que queria testar os limites da relação e estava no balcão só esperando alguém disposto a uma investida para intervir e começar uma briga generalizada? Preciso parar de ler livros comprados em bancas de jornal decadentes. Aliás, triste fim das bancas de revista. Triste não, nunca traziam lotes novos de figurinhas, bem feito, isso sim. Se bem que a culpa aí pode ser do distribuidor ou até mesmo da editora que mandava lotes viciados para a mesma região do país forçando as pessoas dispostas a completar o álbum a viajar dezenas de milhares de quilômetros para, correndo o risco de não ter ido longe o suficiente, encontrar a mesma gama de figurinhas. Anotação mental: jogar fora os romances de banca. E o que colocar no lugar? Fica o questionamento.


A quarta dose veio com uma pedra de gelo a mais, nela estava a coragem necessária para, correndo o risco de ter o corpo jogado em um beco aqui perto, perguntar a loira se tinha visto algo que lhe agradava. Traria a tona um questionamento, uma pergunta a outra pessoa, uma resposta que não dependeria só de mim. Levantei. Ela se levantou. Caminhei na direção dela e ela fez o mesmo. Tivemos o mesmo ímpeto no mesmo instante? Que emocionante. Era como o final daqueles livros que vou jogar fora ao chegar em casa.


Vexame. Podia ouvir o sorriso da noite transformar-se em uma sonira gargalhadas. Passei a noite toda flertando a distância com um espelho. Está decidido, ao chegar em casa vou me jogar fora com os livros.

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