domingo, 17 de março de 2019

Girassol

"Isso não vai dar certo" pensou Helena se levantando com a maior sutileza felina que ela tinha dentro de si. Quando girou o trinco da porta temeu que Janaína pudesse ter acordado. Não, ela tinha no semblante uma exaustão que não achava justo em um rosto tão bonito. Caminhou pela casa com meias nos pés sem se importar se as sujaria a tal ponto que teria de se desfazer delas.

Quando chegou à porta da cozinha que dava acesso para a varanda dos fundos notou que a mesma estava trancada e que a chave não estava ali. O excesso de zelo de Janaína lhe irritava às vezes. Não queria sair pra usar droga, só queria ver o céu. Por sorte a janela da cozinha não tinha grades como as demais então, em pouco menos de um minuto estava do lado de fora ouvindo aquele som abafado da cidade debaixo de um céu estrelado. Não era tão estrelado quanto na sua viagem... com algum esforço levou uma das espreguiçadeiras para o pequeno gramado, tomando cuidado para não atropelar as hortaliças que Janaína plantou.

Céu estrelado. Hortaliças. Insônia. Se lembrou de uma menina, na verdade uma jovem mulher que conheceu. Corpo pequeno, magra, pouco peito, pouca bunda, pernas magras. Sempre com vestido ou saias longas e blusas de alça. Sempre pra mostrar o quão magra era. Lembrando agora Helena quase a relacionou com hippies. Mas ela morava em uma casa pequena, bem aconchegante alguns quilômetros da cidade. Lá tinha uma horta com tomates, pepinos, alface, cebola, morango, laranja, limão, umas duas dúzias de galinha além de, vez por outra, pescar num riacho ali perto.

Helena chegou lá depois de passar dois dias na cidade e praticamente ser escorraçada de lá por ser de fora. Cidades pequenas eram uma merda. Foi quando viu aquela garota magricela, não mais que vinte anos, lhe oferecendo um suco verde. Uma sirene quase lhe tirou das lembranças. Era a primeira coisa, o  tipo refeição que tinha em quase uma semana. Havia roubado meia dúzia de laranjas no caminho até aqui e tomava água das bicas que encontrava estrada afora. Quando acordou a segunda noite na praça a polícia local perguntava quem era. Ora se dizia viajante, ora se dizia em uma jornada espiritual... mas naquele dia disse que estava só passeando pela região, que morava em uma cidade próxima e que havia se desencontrado de sua carona. Helena sempre teve uma habilidade sobre-humana para inventar histórias sobre si.

Foi quando a hippie interviu e disse que me "ajudaria". No caminho até a casa dela Helena soube que a moça magérrima não havia acreditado em uma só palavra mas que sabia que ela não era má pessoa, só estava em busca de algo maior que nem ela sabia o que era. Ao ser desmascarada assim Helena quis saber como ela sabia de tudo aquilo. "Porque eu já passei por isso. Aqui eu me encontrei... mas aqui não é o seu lugar.". Além de hippie ela tinha uns ares de bruxa. Como era de se esperar a casa não tinha grandes luxos, uma televisão antiga, um notebook com adesivos de viagem... era uma casa humilde mas muito confortável e cheia de girassóis.

Ali Helena aprendeu a lidar com a natureza, a ouvir o próprio corpo. A respeitar o tempo das coisas. Teve de aprender a esperar uma semente virar muda. Uma muda virar planta. Uma planta dar frutos. Os frutos amadurecerem. Os frutos maduros serem colhidos. Os frutos colhidos saboreados. Ficou quase dois meses lá. Por um instante sentiu saudade daquela paz. Mas sabia que não era pra voltar lá. Foi uma etapa vencida. Superada. Claro que planejava voltar e visitar um dia, mas primeiro tinha de cuidar de si. Ficou tanto tempo na estrada, deu tanta volta que se esqueceu que tinha aqui, com Janaína, tudo que precisava. Quando as estrelas começavam a sumir dando lugar a um ceu azul escuro que logo clareava ouviu a porta da cozinha destrancar. Ouviu um resmungar baixo vindo da porta e, logo em seguida, haviam duas espreguiçadeiras no gramado.

- Sabe, Hell - Janaína se deitou deixando o corpo relaxar sobre o móvel - Faz tempo que não vejo o nascer do sol.

- Na estrada eu via quase todo dia.

- Você fala pouco daqueles dias... - Janaína não falou como se cobrasse ou intimasse a amiga a falar - ... sente saudade da estrada?

- Um pouco - Helena respondeu olhando a amiga com o canto do olho esperando uma repreensão que não veio - Estava lembrando de uma moça que conheci... loira, bem magra, tinha a mesma mania tua de viver de saia longa, mora lá perto da fronteira com o Paraguai...

- Longe... - Janaína soltou um suspiro baixo - ... conta essa história.

E assim, até o sol subir vários graus céu acima Helena contou toda a história que havia relembrado horas atrás, sobre como a insônia, o céu estrelado e as hortaliças lhe lembraram da pequena que, provavelmente, nesse instante, estaria colhendo os morangos que Helena havia plantado e os vendia na cidade junto com duas dúzias de pés de alface, dez dúzias de ovos e, quem sabe até, um grande namorado pescado horas atrás. Ao fim da história Janaína se propôs a buscar pão enquanto Helena guardava as espreguiçadeiras. Concordou sem reclamar. Quando colocou os dois móveis dentro da varanda voltou ao canteiro onde hortaliças cresciam frondosas e, no meio delas, um girassol reinava absoluto. Lhe tocou com carinho e ternura enquanto, junto com uma lágrima solitária balbuciou:

- Obrigada... Isadora.

domingo, 10 de março de 2019

Salto de Fé

Faziam quase dois meses desde que Janaína e sua melhor cúmplice haviam se reencontrado por um fruto imenso daquela grande árvore do acaso. Ainda recebia uma ou outra mensagem de amigo da faculdade que a convidava para sair. Bares. Boates. Lanchonetes. Motéis... não era mais algo que ela queria. Ainda que nunca tivesse vivido tudo aquilo com a mesma intensidade de seus colegas. Ouviu a porta atrás de si abrir e só então se deu conta de que estava na varanda da casa que havia arranjado depois da peripécia de sua amiga.


- Oi... - Helena parou ao lado da amiga - ... um dólar em troca de saber o que se passa nessa sua cabeça.


- Você não tem um dólar - Janaína sorriu olhando para Helena que já não tinha mais a aparência cadavérica daquela malfadada noite - Como está?

- Me sentindo um lixo - Helena tirou o maço de cigarros do bolso e acendeu dando uma tragada forte soltando a fumaça na direção oposta da amiga - Mas não chega a ser uma novidade.

- Então somos duas... - Janaína fez careta ao ver o cigarro - Espero que esse seja o último.

- De hoje sim - Helena bateu a cinza no vaso de salsinha - E único... me propus a fumar um por dia até não querer mais.

- Bom... assim é bom.

- Mas e você?

- Que tem eu?

- Largou tudo pra cuidar de uma desmiolada como eu - Helena soltou a fumaça admirando o desenho no ar se dissipando - E aquela moça maluca lá... Érika, não é?

- O que tem ela?

- Vocês tavam de caso quando eu apareci...

- Caso? - Janaína riu - A gente se conheceu no bate-papo, marcamos um dia e depois disso a gente se viu uma vez numa lanchonete aqui perto, o objetivo dela era só o motel.

- Que vadia - Helena apertou a bituca na palma da mão - Vou tomar banho.



Helena havia definido tão bem que Janaína ficou sem palavras sentindo os auspícios da noite. Esse lado da cidade parecia uma pequena cidade do interior, poucos prédios, comércio onde as pessoas se conheciam pelo nome. Apesar de ainda estar na mesma Metrópole aqui podia ouvir grilos, cigarras... quase sentiu saudade de quando morava no sul. O celular no seu bolso tocou. No visor o nome de Érika se escreveu. Ponderou ignorar, mas hoje resolveria isso, atendeu tomando a dianteira.

- Alô...

- Hey, Janaína - Érika parecia alterada, bêbada talvez - Tudo bem?

- Não muito - Suspirou - Mas já-já melhora.

- Melhora sim - o som ambiente quase tornou a ligação insuportável por um instante, mas o silêncio imperou - Sobretudo se a gente sair pra tomar alguma coisa... que acha?

- Não ando muito afim de sair, Érika...

- Eita - A voz dela perdeu um pouco do tom alcoolizado - E por que?

- Por que eu ando ocupada...

- Ainda de babá? - Ela estava alcoolizada - Digo...

- Babá? - Janaína sentiu o sangue subir - Eu estou ajudando uma amiga, uma irmã a superar o vício em drogas, depressão e tudo mais e você diz que eu sou babá?

- Janaína - Érika sentiu que falou besteira, era a confirmação daquela máxima que o álcool entra e a verdade sai - Me desculpa, eu...

- Não desculpo não - A respiração de Janaína acelerou - Sabe por que?

- Por que?

- Porque eu não abandono as pessoas por uma noitada, uma tara, um desejo sexual qualquer - O tom era extremamente duro - Esses dias passei pelo seu bairro e vi um cartaz de desaparecida com a sua foto - Janaína caminhou para fora da varanda, não que Helena a ouvisse aos berros - Você foge de casa, deixa marido e dois filhos em casa pra que? Viver umas fantasias sexuais? Pelo menos tivesse a coragem de dizer que ia embora mas, pelo que assuntei, você meteu o pé no meio da noite, me diz, ta valendo a pena?

- Eu...

- Calaboca que eu não terminei - Janaína resolveu jogar toda a frustração que tinha em Érika - No fim você é só uma covarde que foge e fica procurando motivo pra transar ou experimentar algo insano qualquer - Hora do gran finale - Eu te respeitava quando você disse que era CamGirl, sério, eu me coloquei no teu papel e entendi que você precisou se virar pra sustentar sua família e, por mais incrível que pareça, eu aceitei que a gente se encontrasse porque eu também queria espairecer e até aceitava que poderia ter acabado no motel... buscar uma diversão assim até vai porque sei que ninguém é perfeito agora fugir na calada da noite deixando filhos? Caralho, você é mais egoísta do que eu imaginava - Janaína sentia a mão tremer, o coração acelerado, o silêncio perdurou por dois pares de segundos, em seguida ela suspirou -  na boa, volta pra sua família e vai se tratar, porque o que você tem não é safadeza ou desejos diferenciados... é doença mental.

O silêncio imperou. Janaína havia pegado pesado, porém tudo o que falou era o que remoía faziam dias toda vez que pensava em Érika. Ter família, ter filhos pode não ser muito compatível com uma vida oculta, mas não justificava abandonar um para dedicar-se apenas ao outro. A respiração pesada foi se aliviando e do outro lado da linha se ouviu um nariz sendo assoado.

- V-você t-tem razão - um ataque de lucidez? - E-eu... o quê eu tô fazendo?

- Sinceramente? - O tom seguia áspero - Eu não faço a menor ideia.

- M-me leva pra casa?

- Desculpa, Érika... mas não vai rolar - Janaína soltou um profundo suspiro - Preciso ficar de babá.

- Eu... 

Apesar do ódio e da vontade de abandonar, Janaína jamais deixaria uma pessoa na mão, mesmo que fosse uma tremenda filha da puta. Tinha horas que ela odiava esse gênio herdado de seus pais, mas era isso que a tornava a única pessoa que Helena confiava.

- Me passa o endereço de onde você tá - Janaína olhou a lua sair de trás de uma nuvem - E o endereço da sua casa, vou mandar um carro... depois disso não me procura mais até resolver sua vida... cara, eu fucei a rede social do seu marido e você tem uma família maravilhosa, aproveita isso e agradece a deus pela dádiva que você recebeu.

- E-eu... - o choro era extremamente audível do outro lado - Obrigada.

- Tudo bem, você tem cinco minutos para mandar os endereços, se não mandar eu mando descobrir onde você está e mando seu marido ir te buscar.

- Não precisa - Um dos endereços acendeu a tela do celular de Janaína - Eu... vou arrumar isso... não sei como, mas vou dar um jeito.

- Vai sim, você é capaz. 

- Tomara que seja mesmo... - Érika digitou e enviou o outro endereço - Mais uma vez obrigada.

- Tudo bem, agora resolve tudo isso - Janaína suspirou - Tchau.

- T-tchau.

E o silêncio se fez com o fim da ligação. Janaína enviou um carro e monitorou todo o trajeto, era incrível como ninguém conseguia rastrear Érika tão perto de casa, meia dúzia de bairros distante. Quando a corrida chegou ao destino julgou sua missão cumprida, agora era com Érika. Por dois segundos pensou que Helena havia feito basicamente o mesmo de fugir de casa... porém sem deixar marido e dois filhos.

- Difícil ser super-herói em tempo integral hem - Helena estava sentada no degrau entre a varanda e o pequeno pátio - Mas você tem potencial.

- Você acha? - Janaína se virou desligando a tela do aparelho - Aliás, desde quando você está aqui?

- Desde a parte do "eu sou babá" - Helena olhou para a lua, sorriu finamente retirando a toalha dos cabelos - Eu sou um fardo muito pesado pra você, Jana?

- Até que não... - Janaína se sentou ao lado da amiga - ... você é levezinha.

- Eu tô falando sério, Janaína Barcelos.

- Não é, Helena Vicent Stewart, não mesmo.

- Por isso que eu te amo - Helena virou o olhar para a amiga ao seu lado, ao passo que Janaína fez o mesmo. - Você mente duma forma que eu acabo acreditando.

- Mas é a verdade, sua besta - Janaína se levantou oferecendo a mão - Vem, vamos bolar um jantar.

- ... ou pedir uma pizza.

- Oh Hell, a vida não é só pizza - Helena se levantou seguindo a amiga para dentro - Tem macarrão também, você faz o molho enquanto eu tomo banho.

- Feito.

- Mas antes uma coisa... - Janaína parou na porta entre a cozinha e o corredor que terminava no banheiro - ... é bem sério e eu preciso te dizer.

- Que foi?

- Eu te amo, Helena.

- Eu também te amo, Janaína... - Helena sorriu se sentindo completa, não precisava de muito mais do que tinha agora - ... agora vai tomar banho pra tirar essa zica da Érika, anda, xô.

- Nossa, mó quebra clima.

Ambas riram enquanto Janaína ligava o chuveiro sentia o cheiro de cebola refogando. Era bom ver Helena nesse momentos. Que assim conserve até o momento que fosse avisar para a família dela que ela estava bem e que eles eram o problema. Se sentiu idiota por mandar uma pessoa voltar para o seio familiar enquanto mantinha outra afastada. No fim as duas podiam ter inúmeros problemas... o que diferenciava Érika de Helena? Janaína apenas conhecia a história de uma mais a fundo do que a outra. Talvez tivesse feito merda. Quando sentiu uma nuvem estacionar sobre sua cabeça duas batidas na porta do banheiro a despertaram, ela anunciava que o molho estava pronto e alguém tinha que fazer o macarrão. Janaína sorriu, a vida era tomar decisões e não se arrepender. Ela tinha tomado a dela e dito o que achava certo para Érika, se ela absorveu tudo errado, o problema não era mais dela. Fechou o chuveiro colocando um pijama e enrolando os cabelos em um coque. A vida era isso e agora tinha de cozinhar macarrão.

domingo, 3 de março de 2019

Despertar

Janaína não se lembrava onde havia largado os fones de ouvido, a última lembrança era a cama, caminhou a passos rápidos até o quarto e, enquanto girava a maçaneta sem cerimônia alguma lembrou-se que não morava mais sozinha, mas a ordem já havia sido dada para o cérebro, porém outra ordem sobre-escreveu a primeira: entrar e fechar a porta em seguida. 

As cortinas dum pano carmim filtravam a luz do sol e deixavam o ambiente em tons que iam do bordô até o rosa, que era o que iluminava o rosto de Helena que dormia com um sorriso quase enigmático. De repente a busca pelos fones de ouvido se tornou tão pequena diante daquela menina, daquela mulher dormindo ali, tão serena, tão doce... tomando o máximo de cuidado Janaína tirou do bolso da saia o telefone e tirou uma foto que não refletiu nem um décimo da beleza da cena. 

Sem saber porque se encostou na porta fechada do quarto e sentou no chão tentando imaginar com o que a amiga sonhava. As lembranças que deviam se passar pela cabeça dela, as dores, os traumas, as neuras... sem entender muito bem porque, quando deu por si novamente Janaína estava com os olhos rasos em lágrimas vendo Helena dormir como, por certo, a muito não dormia. Se lembrou daquela noite, para variar estava tendo o mesmo pesadelo do acidente, do carro, das cobranças, das vozes, de como gritou pra que se calassem e de acordar com o interfone. O porteiro da madrugada a chamava com urgência.

Em um piscar mais demorado toda aquela cena veio como um flash. Largou o interfone no ar e saiu porta afora de camisola, descalça entrou no elevador. Térreo. Desceu. Ao chegar o rapaz havia acomodado Helena em um sofá que havia na portaria, os olhos dela fechados, uma baba viscosa corria pelo canto da boca da moça. Por um instinto Janaína foi checar a testa. Ela estava fria, sem saber exatamente porque checou o pulso, aquelas milhares de horas assistindo seriados teriam de valer alguma coisa. Parecia fraco. Quando questionado o porteiro se limitou a dizer que um carro prata parou e jogou ela pra fora. Sentiu ódio por não conseguir rastrear o tal carro e poder socar a cara de todos aqueles desgraçados. Sua respiração ficou pesada um instante, trincou os dentes. Helena se moveu um pouco sem despertar e dissipou toda aquela raiva de Janaína. 

Os dias que se seguiram foram tão terríveis quanto aquela noite. Os médicos diziam não poder garantir se ela voltaria e, muito menos, se teria alguma sequela ou coisa do tipo. Foi só no segundo dia em que Helena não acordava que alguém lhe disse que era uma overdose. Janaína se sentiu terrível naquele momento. Como pode deixar que sua partner in crime cair tanto assim? E como não notou os sinais? Por sorte as enfermeiras foram com a cara dela e a deixavam dormir no mesmo quarto, em uma poltrona. Enquanto via os sinais vitais claudicantes Janaína abraçava os joelhos e chorava. Nada mais fazia sentido. Quase chegou a prometer para algum santo da capela do hospital qualquer coisa para que a amiga voltasse. 

Ela não comia, não bebia, só ia ao banheiro. Uma das enfermeiras lhe disse que tinha que se cuidar para quando Helena acordasse a visse bem. Foi só no terceiro dia que voltou a cuidar de si, ainda que minimamente e foi, no quarto dia, que Helena abriu os olhos e disse o quanto odiava ver Janaína chorar, ainda mais sabendo que ela se achava a causa. 

Abriu os olhos despertando daquela lembrança. Deu uma rápida olhada para cima e agradeceu aos céus por ter tido essa oportunidade de fazer mais por alguém e agradeceu de novo por esse alguém ser Helena. Nunca foi de religião nenhuma, mas, naquele momento, agradeceu a deus por tudo até aqui. A paz que sentiu dentro de si lhe preencheu como nunca havia se sentido completa e, sem saber bem porque, deixou que as lágrimas rolassem.

- Odeio te ver chorar - Helena estava com os dois olhos abertos, porém não havia movido um músculo além dos que controlam as pálpebras - Me sinto errada... de novo.

- Você não é errada - Janaína limpou as lágrimas - Eu estava chorando de alegria.

- Alegria? - Helena arqueou uma das sobrancelhas - Conte-me mais.

- Ah... - Janaína suspirou com um sorriso nos lábios - ... te ver dormindo assim é tão... lindo sabe? Te ver bem faz eu me sentir útil...

- Lá vem você com isso - Helena deu um pulo pro lado - Vem cá que vou mostrar sua utilidade.

- Assim, no meio do dia? 

- Problems, where? - Helena notou que Janaína estranhou a proposta - Vai lá, fecha a casa, eu te espero...

Ainda um pouco contrariada Janaína levantou do chão e saiu do quarto deixando a porta aberta. Sabia que, quando Helena propunha algo assim, ela não podia negar, até porque ela sabia que ela também precisava disso. Era biologicamente necessário. Trancou a porta, colocou o cadeado na única janela que havia aberto. Na volta para o quarto pegou uma garrafa de água, afinal não precisar sair do cômodo naquele momento tão delas era crucial. Voltou ao quarto deixando a porta só encostada, afinal podiam precisar sair correndo para o banheiro.

- Pronto - Janaína deixou a garrafa do lado da cama pedindo espaço para se deitar ao lado de Helena - Enfim sós.

- Oba! - Helena abraçou Janaína que abraçou de volta roubando um selinho - Gostei disso.

E, sem se preocupar com mais nada ao seu redor, como se toda a criação houvesse parado para que as duas pudessem vivenciar aquele momento em sua plenitude não se ouviu, naquele resto de dia, nenhuma buzina, nenhuma sirene, nenhum carro com som alto, nenhuma voz vendendo algo na rua. Os únicos sons que se ouviam naquele instaste raro eram de alguns carros ao longe, de pássaros no telhado e da respiração de Helena e Janaína se acalmando aos poucos até que, enfim dissiparem os pensamentos ruins com uma das atividades mais básicas de todo ser vivo. Com um sorriso fino ambas se permitiram dormir no meio de uma tarde de terça-feira.