quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Aos 32

Olá, pessoas.

Em anos anteriores eu sempre escrevia essa crônica de aniversário com vários dias de antecedência e deixava programado para ser postada. Esse ano, no começo do mês de novembro, eu quase deletei o blog, sério mesmo. Foi um ano bem bosta pra minha escrita. Não ando dando conta nem de escrever pra Janaína muito menos pra Elisa (aka Lis). Falando na ruiva (sim, a Lis é ruiva) alguma boa coisa nesse ano foi: eu finalmente registrei o livro dela, tô tentando vender na Amazon, mas estou emperrado em alguns detalhes chatos, mas devo resolvê-los ainda hoje.

Hoje é dia dezenove, acordei menos ruim. Ontem foi um dia bem merda dentro da minha cabeça e hoje, ao que tudo indica, é um dia menos merda. Confesso que estou com um pouquinho de esperança porque recebi uma "seletiva" de trampo freelancer aqui no e-mail. Estou esperando a carga de "redator publicitário que escreve sobre qualquer tema" carregar. Logo liga.

Que mais... ah sim, esse ano tive algumas conquistas deveras interessante do tipo: me formei na faculdade. Agora sim sou publicitário formado, tenho direito a cela especial haha

Aconteceu mais uma coisa que não rola falar aqui, mas foi algo muito transcendental, que me fez rever tanta coisa na minha vida e o retorno das pessoas que viram foi positivo só que o retorno do espelho foi melhor, foi quase aquele gif explodindo cabeça, foi algo... mágico. Juro, não queria usar essa palavra mas foi o que desenhou na minha cabeça enquanto eu olho pra parede e penso naquele instante já com os olhos marejados. Foi muito bom.

Pro próximo ano não faço a menor ideia. Quero fazer algumas coisas diferentes nesse ano que se inicia hoje, ter umas experiências, levantar a oficina mais, quem sabe até transformar ela em uma marca e sair vendendo os produtos dela pra alavancar a renda mensal. 

E sim, sou eu fazendo planos. Uma hora preciso voltar a eles, resolver algumas coisas ainda dentro da minha cachola, mas... está encaminhado. Espero que ano que vem seja menos pior pro blog e tenham mais histórias, porque esse ano foi uma bela bostinha.

Enfim, não gosto de me alongar nessa crônica, então é isso. Vamos sobrevivendo que é o que dá pra fazer hoje.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Girando Mi Moneda

Enfim aquela longa estrada chega a sua bifurcação, daqui em diante não sou mais um acadêmico e me torno um egresso da faculdade. Não vou fazer aqueles clichês dizendo que parece que foi ontem que entrei por aqueles portões, caminhei pelos tijolinhos completamente perdido pensando onde era minha sala. Depois conhecer uma galera inteira completamente nova.

Mais de cinquenta alunos na primeira semana (alguns de outros semestres que estavam fazendo disciplinas atrasadas), logo as primeiras aulas, trabalhos, provas, forma grupo, descobre afinidades... de repente tinham novos colegas que viraram amigos que acabaram, de alguma forma, entrando e marcando a vida tanto quanto qualquer outro da família.

Depois veio o estágio com várias descobertas, novas habilidades adquiridas, novas vivências, novos desafios, novas amizades, novos conhecimentos e a certeza de que esse caminho era o melhor que havia possibilidade naquela hora. Foram bons dois anos no estágio.

Nos trabalhos de conclusão (sim, foram três) a dificuldade se mostrava quase intransponível, mas mantido o foco e fazendo de tudo para não desmoronar e tentar passar por eles o mais inteiro possível, foi bem difícil, mas, sobrevivi.

Os semestres todos cada um com sua particularidade, desde professor que tinha pouco conteúdo e dispensava mais cedo, professor que era um gênio na explicação, professora que tenho total carinho até hoje, professor que me ajudou a seguir em frente... até professora que às vezes esquecida do conteúdo e falava da vida pessoal, de séries, filmes...

Não vou dizer que vou sentir saudade, porque não quero mentir, mas também agora, olhando "de fora" as maiores lembranças que vem são os momentos com colegas, com amigos, com professores com pessoas que acabaram se tornando especiais no processo de forja do que eu sou hoje. Claro, tiveram momentos que precisei passar completamente sozinho, horas que tudo que eu queria era jogar tudo pra puta que pariu e nunca mais pisar lá, mas, nesses momentos, sempre tinha um amigo, uma amiga a me incentivar, a me dar forças.

É impossível terminar essa elegia (porque sim, é uma elegia) sem citar e agradecer nominalmente uma única entidade que sempre esteve comigo, seja indo, voltando, encarando chuva, sol, quebras, quedas, dor, cansaço... é por isso que esse pequeno parágrafo eu dedico à ela, a Elanor, minha bicicleta, minha Caloi Montain Bike 1994, minha fiel companheira que está ali, pronta para a próxima jornada que surge no horizonte.

Aqui em devia agradecer as pessoas também, porém não quero correr o menor risco de esquecer o nome de alguém (porque sim, eu vou acabar esquecendo) então seja quem for que esteja lendo, sejam as amizades da faculdade ou de fora dela eu quero deixar aqui meu muito obrigado por todo o apoio, por todas as horas dando pitacos nos meus trabalhos madrugada a dentro, nos comentários bons, ruins, construtivos ou não. Fica aqui meu muito obrigado a vocês todos, sério, vocês são fodas!

Claro que tenho muito a agradecer aos meus pais, mesmo com seus problemas nunca deixaram de me dar suporte, de me apoiar, de dar pitaco nos meus trabalhos, de tolerar minhas noites viradas porque "de madrugada eu trabalho melhor", nas eventuais ajudas para consertar a bicicleta, na ajuda de custo para inteirar nas peças que precisava levar impresso, em ir buscar/levar as peças pra imprimir... em todo o apoio em casa, sério, sem vocês dois eu não teria chegado até o dia de hoje. Se eu pudesse eu cortaria o "canudo" e daria metade pra cada um, vocês merecem.

E agora? Não faço a menor ideia. Sei que eu preciso de alguns instantes pra respirar, retomar o fôlego e botar todos os planos do papel em prática, levar a sério um dos ideais que defini pra mim esse ano: Não importa os voos que você planeja, aonde você quer chegar, quão alto você queira subir, se for consensual, se não fizer mal nenhum pra ninguém (sobretudo você hem!) e se lhe der prazer... faça. Relacionamentos, desejos, pessoas vem e vão... o importante é que é que você seja fiel a você. 

Tá, mas e agora? Agora é aquela música que uso de assinatura no meu e-mail que vou por a letra traduzida completa aqui: 

Eu estou no meio desta estrada
Tantas encruzilhadas ficaram para trás
E no ar minha moeda está girando
E o que tiver que ser
Será

Todos os altos e baixos da maré
Todas as provações que já passei
Eu levo o seu sorriso como bandeira
E o que tiver que ser
Será

O que tiver que ser, que seja
E será por alguma coisa
Não acredito na eternidade dos combates
Nem nas receitas de felicidade

Quando minhas primaveras se passarem
E, a sorte estiver fadada a descansar
Olharei a sua foto na minha carteira
E o que tiver que ser
Será

E, o que queira acreditar, acredite!
E o que não, sua razão terá
Eu solto minha canção no redemoinho
E que escute quem a queira escutar

E no ar está girando minha moeda
E o que tiver que ser
Será

É isso: Ya está en aire girando mí moneda, y que sea lo que sea.

Mais uma vez, obrigado a todos!

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Diário de Janaína

Havia um extremo silêncio da casa. Janaína e Helena estavam fora. Os únicos ruídos dentro da residência eram provenientes da rua, casas vizinhas ou do motor da geladeira de segunda-mão que tinham, provavelmente uma manutenção na borracha da porta resolveria parte do problema. Na sala as poucas almofadas estavam todas de um lado, lembrança de alguém que se esticou por ali. Além do eletrodoméstico antigo, a cozinha ainda possuía um fogão e uma pia limpa com meia dúzia de talhes, dois copos e três pratos no escorredor. No banheiro cremes, shampoos, tudo deixava explicito que as duas habitantes da casa eram mulheres. No quarto, além das camas, havia um guarda-roupas grande o suficiente para todas as roupas e calçados da dupla de jovens, no fundo do armário uma caixa resistia e destoava de tudo, dentro dela lembranças, fotos, alguns cartões postais, um tsuru muito bem feito e um diário. Não qualquer diário. O último diário que Janaína escreverá na sua vida e que sobreviveu ao trágico fim de todos os outros que era o fogo. Por isso nesse silêncio, entre um ruído de motor e outro, o diário leu-se.


10/05

Sabe, diário, cada dia que passa eu sinto mais raiva daquela pessoa que eu não devia ter esse sentimento. Sempre me cobrando uma perfeição impossível, uma qualidade esmerada ao extremo, foi quando, sem querer, eu descobri que ela inventava conquistas minhas para se exibir pros parentes ricos. Eu já sabia que ela gostava de contar uma vantagem que não existia pros outros, de sempre parecer melhor. Mas isso? Ridículo. Até vindo dela.
Apesar de termos uma boa condição financeira graças ao papai, sei que não posso depender deles a vida toda e, por isso, sempre dou um jeito de arrumar algum dinheiro. Até porque, se for pedir pra mamãe dinheiro ela vai querer que siga todos os ritos de uma licitação, com inúmeras provas de que o que quero comprar é necessário e de que eu estou indo no de menor preço. Por isso digito trabalhos pros outros, corrijo, tem dado o suficiente pra comprar algumas bobagenzinhas.


12/05

Eu sei que diário é algo pra ser feito todo dia, mas, sinceramente, algo repleto de regras já basta a convivência aqui em casa. Nunca fui a aluna mais popular da turma, mas também nunca deixei de ter algumas boas amigas, dessas de sair, ir no cinema, sentar junto na sala. Só que quem não gosta? Exatamente. Tudo porque uma delas, a Rê, não é normal. Nunca tive problemas em outras épocas da vida, mas, desde que a história do namoro da Renata com a Victória se espalhou, a vida das duas virou o inferno. Até mesmo pra sair com elas ficou um saco, é mais fácil eu dizer que vou pro bordel passar o dia dando do que dizer que vou no cinema com a Renata, Victória e Luísa. Não consigo entender porque as pessoas não podem aceitar a felicidade alheia.


12/05

HOJE EU TÔ PUTA DA CARA. Não com você, diário, você é meu ponto de equilíbrio, você é onde eu posso vir com a certeza que não vou ser julgada. A tarde eu disse que ia sair com umas amigas dizendo que não era a Rê e a Vic... não é que aquela velha me seguiu? Deu maior fuzuê, no meio do shopping lotado! Não gosto de datar, mas hoje era domingo e tipo, toda a cidade tava lá dentro. Vou tentar dormir antes que eu faça alguma besteira.


15/05

Já faziam alguns dias que eu estava namorando aquele vestido sabe? Bem anos 50, o tecido gostoso, nem quente nem frio, o comprimento pouco acima do joelho, bem rodado. Pois bem. Já tinham alguns dias que eu estava de olho nele, mas não podia pegar, estava sem dinheiro e os velhos não liberariam, "você já tem roupa demais, Janaína, pra que mais? Ainda um vestido? Filha minha não vai ficar usando esse tipo de vestido." Pois então. Eu corri atrás e consegui o dinheiro. Comprei. Trouxe escondido pra casa, vou usar no baile do mês que vem. Aliás, vai ser outro parto pra conseguir ir nele, vou ter que inventar alguma história mirabolante porque "filha minha não fica indo em baile, dê-se ao respeito, Janaína. Quer conhecer alguém pra namorar? Frequente os eventos sociais que vamos." Bléh.


26/05

Já se vão mais de dez dias que eu não escrevia né? Tudo tem passado tão rápido que não ta dando tempo de parar pra escrever. Mas amanhã é o baile e estou ansiosa. Já provei o vestido e criei a história de que ia passar a noite na casa da Luísa. A mãe dela cobriria tudo, ela é muito mais gente boa do que o que tenho em casa. Depois era só voltar pra cá, dormia na casa dela e já era. Como boa escorpiana sou boa maquinando planos.


27/05

Sabe, diário, ontem foi perfeito. Não só pelo baile mas pelo que aconteceu no baile. Já fazia um tempo que eu estava arrastando a maior asa pelo William e, no baile, descobri que era mútuo. Ficamos a primeira vez bem no meio da pista, sob o olhar de todo mundo. E daí? É incrível como as coisas ganham cor quando estamos... nossa. Quase escrevi "apaixonada", será?


30/05

Muito bem, senhor diário, pode confirmar: Estou namorando! Agora vamos poder ir os três casais no cinema sem ninguém segurando vela: Renata e Victória, Luisa e Rubens e eu e o William. Tudo segue tão lindo que tenho medo de amanhã depois dar algum problema.


30/06

Nossa, tem um mês que eu não escrevia aqui! Mas esse sumiço teve uma ótima razão: O namoro engrenou e ontem, depois de muito querer mas sempre ter algo que desse errado aconteceu. Devo confessar que todos os anos assistindo pornografia me tornaram uma pessoa que mais ou menos sabia o que fazer naquela hora. Não digo que não doeu, doeu sim, ainda tá doendo um pouquinho, mas a forma como ele conduziu tudo foi tão... mágica, que o prazer que senti foi maior que a dor e, devo dizer, foi muito melhor do que eu imaginava! Sinceramente, hoje eu posso dizer que estou feliz e me sentindo completa! Agora sei porque adulto gosta tando disso... é muito bom! Já quero de novo! O foda é que... deixa pra lá haha


17/07

Aconteceu algo que eu temia: Não, ainda não foi descobrirem que a filhinha toda puritana dela não é mais virgem. Eu não resisti a um convite da Rê e fui pra casa dela depois que a Vic foi embora pra Alemanha (!) tentar consolar e distrair a amiga... ao contrário do que o senhor pode pensar, senhor diário, a ida dela pra lá nada tem a ver com o namoro, sério. Os pais dela super não ligavam. Claro, achavam estranho, mas achavam que era uma fase e se ela estivesse feliz beleza. Por que aqui não pode ser assim? Enfim, voltando ao ocorrido: Foi sexta passada, depois da aula resolvi ir com a Rê pra casa dela, como amiga mesmo, sabe? Só que aí... Não sei direito como aconteceu, estávamos no quarto dela quando ela apareceu com um brinquedo daqueles dos filmes. Fiquei na fissura, queria experimentar. Óbvio que a Rê curtiu a ideia (sobretudo depois de umas ervas que ela arrumou, dizia que a Vic que fez ela aprender a gostar daquilo) e lá fomos nós.
Devo confessar que beijar uma garota é mais gostoso que beijar um garoto. Não sei se é pela mistura do gosto dos batons, se é pelo lábio macio, pela pele macia, pela mão mais quente ou por saber exatamente onde tocar sem causar desconforto.
No entanto, o que aconteceu não foi eu ter transado com a Renata, pelo contrário, a gente estava dando uns beijos quentes, talvez até acontecesse, mas o que aconteceu foi pior: Não sei se eu mencionei, mas o William é irmão da Renata e... bem. 
DEU MUITA MERDA.
Foda que eu adorei a situação do flagra. Claro que nada disso chegou em casa e passei meia hora numa loja exotérica pra tentar tirar o cheiro de erva de mim. 


18/07

A continuação da merda de ontem foi tão colossal que acho mais fácil por em tópicos:
- William e eu terminamos porque, em tese, eu traí ele.
- Renata e Victória terminaram também, porque o William correu contar pra ela.
- Renata tá putaça comigo.
- William idem.
- Victória nem preciso dizer.
- Luísa até tentou me apoiar, porém quando soube a história toda também ficou putaça comigo.
- Minha mãe ficou sabendo de tudo e tá puta comigo em um tamanho que não sei dimensionar. Saber que a filhazinha pura dela além de não ser mais virgem, tinha beijado outra garota e usado maconha.
- Meu pai cogitou me mandar pra fora do país, sugeri a Alemanha, ele ficou puto.
Resumindo: Todos os meus amigos tão putos comigo. Meus pais também. E eu? Eu tô adorando. Assim posso ficar em casa dormindo o dia inteiro sem incomodar e ser incomodada por ninguém.


22/07

O clima amenizou. Acho que meu pai falou com a minha mãe e ela relevou tudo o que aconteceu. Mas Renata e William não olham na minha cara. Luísa até conversa comigo mas não quer ficar no meio da briga. Foda-se, esse é o último ano mesmo. Ninguém vai se ver depois da formatura. Talvez aceite a ideia do velho de ir pra algum país estudar. Queria alguma coisa de comunicação, ele não gostou da ideia, diz que não vê futuro nisso.


14/08

Foi inevitável. Eu juro. Eu queria parar, eu sentia a fúria dentro de mim. Foi uma explosão, eu não queria fazer o movimento. Eu estava... lúcida o tempo todo e ainda assim fiz. Desculpa diário. Hoje é só isso.


16/08

Acho que chegou a hora de falar o que aconteceu: Eu fiz algumas pesquisas, alguns testes vocacionais e vi que minha área seria alguma coisa de publicidade ou jornalismo. A mãe disse que eu tinha que fazer algo que desse dinheiro, porque não ia ficar me sustentando o resto da vida. Eu explodi em raiva. Falei que dinheiro não era tudo na vida. Ela discordou. Disse que eu falava igual os drogados (hippies) que vendiam coisa na praia e ia virar mendiga viciada ou qualquer coisa dessas. Eu estava pondo os pratos na mesa pro jantar. Tinha posto um garfo e só sobrou na minha mão uma faca. Ela estava de costas e eu cravei a faca pouco abaixo do pescoço, ali não tem nada de órgão, a coluna é mais pro lado. Foi um segundo de névoa na visão, quando vi meia faca estava nela, meu pai me empurrando pra longe e eu no canto chorando muito. Ela tá bem, o corte, apesar de profundo, foi sem gravidade. Fazem dois dias que eu estou tremendo. Tô com medo, sozinha. Acho que vou resolver isso tudo de uma vez só, pelo bem de todo mundo, vou fazer o que já devia ter feito ano passado.


24/09

Sumi né? Depois do ocorrido eu estava decidida, eu ia me matar. Já tinha o plano pronto, mas meu pai me impediu e me colocou num spa "pra passar uns dias tranquilos", mas era uma clínica psiquiátrica mesmo. Foram duas semanas chorando sem parar, depois secou. Nada mais tinha tanto sentido. Não era raro eu e outros internos darmos um jeito de transar sem pensar em nada. Fazem quatro dias que uma voz dentro de mim se pronunciou, se intitulou raposa e disse que, todo momento extremo da minha vida, era com ela. Gostei disso. Raposa.


26/09

Voltei a frequentar a escola. Dopada. O corpo estava lá, respondia a estímulos, mas, de repente, tudo aquilo ficou tão alheio na minha frente. Tudo perdeu seu sentido. Quero mais me formar logo e ir embora daqui, esquecer essa terra.


01/10

Luísa voltou a falar comigo. Mas ela parecia diferente. Renata também. William, contrariado e magoado, se aproximava aos poucos. "Se aproxime, eu não mordo", era a voz da raposa comandando tudo. Falta um mês pra eu me tornar maior de idade. Já pensava o quanto de aventuras eu poderia viver. Sobretudo sexuais, tanta coisa que vi em vídeo e queria experimentar... mas aqui, nessa terra pequena, não rolava. Acalma teu fogo, raposa.


02/10

Falta um mês. Exatamente um mês. Não vejo mais nada, só isso. Nem mesmo as broncas dos velhos fazem efeito. Ah, ela se recuperou bem, só ficou uma imensa cicatriz nas costas. Diz ela que tem uma cirurgia marcada pra corrigir isso e me joga na cara que a culpa é minha. Mas logo em lembra do que fiz e... ela se cala. Tão bom ter lenha pra queimar.


02/11

Pedi pra não fazer festa. O pessoal da escola reclamou. O pessoal em casa reclamou. Os parentes reclamaram. Pau no cu deles. Com a identidade comprei uma bela garrafa de vodka e me fechei no quarto. Bebi, dormi, assisti umas coisas. Provavelmente foi o melhor aniversário da minha vida. Parabéns pra mim.


16/11

Mamãe foi fazer a tal cirurgia na cidade dos príncipes. Nem perguntei se podia ir junto, não estava afim de ficar passeando. Tinha muita coisa pra bolar sozinha. Na Metrópole tem muitos cursos bons, consigo achar uma casa num valor legal. Fora que ficar sozinha é muito bom. Chamei a Renata pra vir aqui pra gente terminar o que começamos meses atrás. Ela me chamou de doida. Acho que ela não vem.


21/11

Houveram uns complicadores na cirurgia. Francamente. Cirurgia estética pra remover uma cicatriz. Eles ficariam mais uns dias fora. A despensa estava cheia, mas acabei discutindo brevemente no telefone. Eu não queria ir lá. Sentia que algo ruim aconteceria se eu fosse. Será que a maioridade me trouxe poderes místicos? Eu hein.


28/11

Declinei da minha clausura escola-casa, casa-escola. Como já não haveriam mais provas e minhas notas estavam ótimas eu aceitei o convite pra ir pra cidade dos príncipes, amanhã ela recebe alta e diz que quer que eu esteja lá. 


13/12

Não sei que forças me colocaram a caneta à mão. Mas eu preciso escrever essa elegia e dizer que agora, por mais que eu ainda não tenha me dado conta disso, estou completamente sozinha no mundo. Mais que isso, agora estou, enfim, de partida dessa terra aqui. Preciso me distanciar desse lugar. Daqui uma semana saem os papéis do testamento e eu sou a única beneficiária. Vesti a raposa tão bem com lágrimas e dor nesses últimos dias que a Janaína real, por baixo dessa pele toda, seguiu indiferente, anestesiada, como se nada daquilo fosse real. Eu lembro que chovia. Não havia animosidade dentro daquele carro, apenas o silêncio, o som do motor, do rádio, dos outros carros e da chuva. Um instante. Um maldito instante e tudo aquilo se foi. De repente só sobrou eu. Apenas eu. Mal entrei na maioridade e já tenho que me virar sozinha. Eu ainda não sei como foi que não me machuquei. Deus? Sei lá. Tentaram vir me dar apoio, me ofereceram ajuda, um monte de coisa. Mas eu já tinha planos de ir embora, agora os planos verão a luz do dia.

Obrigado por tudo pai, mãe, um dia a gente se encontra. Amo vocês.

domingo, 5 de maio de 2019

Mar Redondo


Antonela ainda se lembrava do dia que chegou aqui com o trem. Já faziam uns bons vinte anos. Tanta coisa havia mudado não só em sua vida como no fato do trem não passar mais por aqui. Quer dizer, o trem de carga ainda chegava no porto, o de passageiros, no entanto, ficava na cidade anterior, igualmente litorânea, mas não tão bela quanto essa.

Convenhamos que ela se apaixonou pela arquitetura, depois com o acesso fácil às praias, à capital, depois vieram tantas outras paixões que ela já não sabia mais o que ainda lhe deixava ali, num amanhecer nebuloso de maio, vendo os barcos de passageiros indo para a ilha. Franziu a testa um instante vendo sua paixão mais recente vindo na sua direção.

O mar havia levado o coração do pai da pequena que corria com um cata-ventos a chamando de mãe. Faziam poucos minutos que Antonela havia deixado o esposo no porto, trabalhava embarcado, o próximo porto era no Uruguai e depois seguia para a China, ida e volta davam quase quarenta dias longe dele. Claro que a tecnologia aplacava um pouco da saudade e a presença de Beatriz, que pareceu entender a introspeção da mãe pois ao chegar ao lado dela se calou, facilitava os dias.

Apesar do bom salário dele ela não se limitava a dar uma de Penélope esperando seu Odisseu e, como boa guerreira que foi desde o dia que desceu daquele trem, lecionava durante o dia em uma escola perto dos trilhos. Enquanto seus colegas reclamavam da constante de locomotivas e da falta de planejamento do Estado em construir uma escola ali, ela não se importava tanto, tinha fascinação por aquelas máquinas mágicas que a trouxeram para cá e, a cada intervalo nas aulas lhe rememorava o motivo dela estar ali e de ali permanecer.

Com a ponta dos dedos calculou quanto tinha no bolso. Sempre andava com os documentos de Beatriz consigo pois não era raro duvidar da maternidade de Antonela, afinal havia puxado mais o pai, neto de escravos do que ela, bisneta de italianos. Num impulso perguntou do próximo barco pra ilha, dez minutos. Comprou a passagem, hoje o dia era de rever uma paixão mais antiga, a paixão que a trouxe aqui pra começo de conversa: o mar.

domingo, 17 de março de 2019

Girassol

"Isso não vai dar certo" pensou Helena se levantando com a maior sutileza felina que ela tinha dentro de si. Quando girou o trinco da porta temeu que Janaína pudesse ter acordado. Não, ela tinha no semblante uma exaustão que não achava justo em um rosto tão bonito. Caminhou pela casa com meias nos pés sem se importar se as sujaria a tal ponto que teria de se desfazer delas.

Quando chegou à porta da cozinha que dava acesso para a varanda dos fundos notou que a mesma estava trancada e que a chave não estava ali. O excesso de zelo de Janaína lhe irritava às vezes. Não queria sair pra usar droga, só queria ver o céu. Por sorte a janela da cozinha não tinha grades como as demais então, em pouco menos de um minuto estava do lado de fora ouvindo aquele som abafado da cidade debaixo de um céu estrelado. Não era tão estrelado quanto na sua viagem... com algum esforço levou uma das espreguiçadeiras para o pequeno gramado, tomando cuidado para não atropelar as hortaliças que Janaína plantou.

Céu estrelado. Hortaliças. Insônia. Se lembrou de uma menina, na verdade uma jovem mulher que conheceu. Corpo pequeno, magra, pouco peito, pouca bunda, pernas magras. Sempre com vestido ou saias longas e blusas de alça. Sempre pra mostrar o quão magra era. Lembrando agora Helena quase a relacionou com hippies. Mas ela morava em uma casa pequena, bem aconchegante alguns quilômetros da cidade. Lá tinha uma horta com tomates, pepinos, alface, cebola, morango, laranja, limão, umas duas dúzias de galinha além de, vez por outra, pescar num riacho ali perto.

Helena chegou lá depois de passar dois dias na cidade e praticamente ser escorraçada de lá por ser de fora. Cidades pequenas eram uma merda. Foi quando viu aquela garota magricela, não mais que vinte anos, lhe oferecendo um suco verde. Uma sirene quase lhe tirou das lembranças. Era a primeira coisa, o  tipo refeição que tinha em quase uma semana. Havia roubado meia dúzia de laranjas no caminho até aqui e tomava água das bicas que encontrava estrada afora. Quando acordou a segunda noite na praça a polícia local perguntava quem era. Ora se dizia viajante, ora se dizia em uma jornada espiritual... mas naquele dia disse que estava só passeando pela região, que morava em uma cidade próxima e que havia se desencontrado de sua carona. Helena sempre teve uma habilidade sobre-humana para inventar histórias sobre si.

Foi quando a hippie interviu e disse que me "ajudaria". No caminho até a casa dela Helena soube que a moça magérrima não havia acreditado em uma só palavra mas que sabia que ela não era má pessoa, só estava em busca de algo maior que nem ela sabia o que era. Ao ser desmascarada assim Helena quis saber como ela sabia de tudo aquilo. "Porque eu já passei por isso. Aqui eu me encontrei... mas aqui não é o seu lugar.". Além de hippie ela tinha uns ares de bruxa. Como era de se esperar a casa não tinha grandes luxos, uma televisão antiga, um notebook com adesivos de viagem... era uma casa humilde mas muito confortável e cheia de girassóis.

Ali Helena aprendeu a lidar com a natureza, a ouvir o próprio corpo. A respeitar o tempo das coisas. Teve de aprender a esperar uma semente virar muda. Uma muda virar planta. Uma planta dar frutos. Os frutos amadurecerem. Os frutos maduros serem colhidos. Os frutos colhidos saboreados. Ficou quase dois meses lá. Por um instante sentiu saudade daquela paz. Mas sabia que não era pra voltar lá. Foi uma etapa vencida. Superada. Claro que planejava voltar e visitar um dia, mas primeiro tinha de cuidar de si. Ficou tanto tempo na estrada, deu tanta volta que se esqueceu que tinha aqui, com Janaína, tudo que precisava. Quando as estrelas começavam a sumir dando lugar a um ceu azul escuro que logo clareava ouviu a porta da cozinha destrancar. Ouviu um resmungar baixo vindo da porta e, logo em seguida, haviam duas espreguiçadeiras no gramado.

- Sabe, Hell - Janaína se deitou deixando o corpo relaxar sobre o móvel - Faz tempo que não vejo o nascer do sol.

- Na estrada eu via quase todo dia.

- Você fala pouco daqueles dias... - Janaína não falou como se cobrasse ou intimasse a amiga a falar - ... sente saudade da estrada?

- Um pouco - Helena respondeu olhando a amiga com o canto do olho esperando uma repreensão que não veio - Estava lembrando de uma moça que conheci... loira, bem magra, tinha a mesma mania tua de viver de saia longa, mora lá perto da fronteira com o Paraguai...

- Longe... - Janaína soltou um suspiro baixo - ... conta essa história.

E assim, até o sol subir vários graus céu acima Helena contou toda a história que havia relembrado horas atrás, sobre como a insônia, o céu estrelado e as hortaliças lhe lembraram da pequena que, provavelmente, nesse instante, estaria colhendo os morangos que Helena havia plantado e os vendia na cidade junto com duas dúzias de pés de alface, dez dúzias de ovos e, quem sabe até, um grande namorado pescado horas atrás. Ao fim da história Janaína se propôs a buscar pão enquanto Helena guardava as espreguiçadeiras. Concordou sem reclamar. Quando colocou os dois móveis dentro da varanda voltou ao canteiro onde hortaliças cresciam frondosas e, no meio delas, um girassol reinava absoluto. Lhe tocou com carinho e ternura enquanto, junto com uma lágrima solitária balbuciou:

- Obrigada... Isadora.

domingo, 10 de março de 2019

Salto de Fé

Faziam quase dois meses desde que Janaína e sua melhor cúmplice haviam se reencontrado por um fruto imenso daquela grande árvore do acaso. Ainda recebia uma ou outra mensagem de amigo da faculdade que a convidava para sair. Bares. Boates. Lanchonetes. Motéis... não era mais algo que ela queria. Ainda que nunca tivesse vivido tudo aquilo com a mesma intensidade de seus colegas. Ouviu a porta atrás de si abrir e só então se deu conta de que estava na varanda da casa que havia arranjado depois da peripécia de sua amiga.


- Oi... - Helena parou ao lado da amiga - ... um dólar em troca de saber o que se passa nessa sua cabeça.


- Você não tem um dólar - Janaína sorriu olhando para Helena que já não tinha mais a aparência cadavérica daquela malfadada noite - Como está?

- Me sentindo um lixo - Helena tirou o maço de cigarros do bolso e acendeu dando uma tragada forte soltando a fumaça na direção oposta da amiga - Mas não chega a ser uma novidade.

- Então somos duas... - Janaína fez careta ao ver o cigarro - Espero que esse seja o último.

- De hoje sim - Helena bateu a cinza no vaso de salsinha - E único... me propus a fumar um por dia até não querer mais.

- Bom... assim é bom.

- Mas e você?

- Que tem eu?

- Largou tudo pra cuidar de uma desmiolada como eu - Helena soltou a fumaça admirando o desenho no ar se dissipando - E aquela moça maluca lá... Érika, não é?

- O que tem ela?

- Vocês tavam de caso quando eu apareci...

- Caso? - Janaína riu - A gente se conheceu no bate-papo, marcamos um dia e depois disso a gente se viu uma vez numa lanchonete aqui perto, o objetivo dela era só o motel.

- Que vadia - Helena apertou a bituca na palma da mão - Vou tomar banho.



Helena havia definido tão bem que Janaína ficou sem palavras sentindo os auspícios da noite. Esse lado da cidade parecia uma pequena cidade do interior, poucos prédios, comércio onde as pessoas se conheciam pelo nome. Apesar de ainda estar na mesma Metrópole aqui podia ouvir grilos, cigarras... quase sentiu saudade de quando morava no sul. O celular no seu bolso tocou. No visor o nome de Érika se escreveu. Ponderou ignorar, mas hoje resolveria isso, atendeu tomando a dianteira.

- Alô...

- Hey, Janaína - Érika parecia alterada, bêbada talvez - Tudo bem?

- Não muito - Suspirou - Mas já-já melhora.

- Melhora sim - o som ambiente quase tornou a ligação insuportável por um instante, mas o silêncio imperou - Sobretudo se a gente sair pra tomar alguma coisa... que acha?

- Não ando muito afim de sair, Érika...

- Eita - A voz dela perdeu um pouco do tom alcoolizado - E por que?

- Por que eu ando ocupada...

- Ainda de babá? - Ela estava alcoolizada - Digo...

- Babá? - Janaína sentiu o sangue subir - Eu estou ajudando uma amiga, uma irmã a superar o vício em drogas, depressão e tudo mais e você diz que eu sou babá?

- Janaína - Érika sentiu que falou besteira, era a confirmação daquela máxima que o álcool entra e a verdade sai - Me desculpa, eu...

- Não desculpo não - A respiração de Janaína acelerou - Sabe por que?

- Por que?

- Porque eu não abandono as pessoas por uma noitada, uma tara, um desejo sexual qualquer - O tom era extremamente duro - Esses dias passei pelo seu bairro e vi um cartaz de desaparecida com a sua foto - Janaína caminhou para fora da varanda, não que Helena a ouvisse aos berros - Você foge de casa, deixa marido e dois filhos em casa pra que? Viver umas fantasias sexuais? Pelo menos tivesse a coragem de dizer que ia embora mas, pelo que assuntei, você meteu o pé no meio da noite, me diz, ta valendo a pena?

- Eu...

- Calaboca que eu não terminei - Janaína resolveu jogar toda a frustração que tinha em Érika - No fim você é só uma covarde que foge e fica procurando motivo pra transar ou experimentar algo insano qualquer - Hora do gran finale - Eu te respeitava quando você disse que era CamGirl, sério, eu me coloquei no teu papel e entendi que você precisou se virar pra sustentar sua família e, por mais incrível que pareça, eu aceitei que a gente se encontrasse porque eu também queria espairecer e até aceitava que poderia ter acabado no motel... buscar uma diversão assim até vai porque sei que ninguém é perfeito agora fugir na calada da noite deixando filhos? Caralho, você é mais egoísta do que eu imaginava - Janaína sentia a mão tremer, o coração acelerado, o silêncio perdurou por dois pares de segundos, em seguida ela suspirou -  na boa, volta pra sua família e vai se tratar, porque o que você tem não é safadeza ou desejos diferenciados... é doença mental.

O silêncio imperou. Janaína havia pegado pesado, porém tudo o que falou era o que remoía faziam dias toda vez que pensava em Érika. Ter família, ter filhos pode não ser muito compatível com uma vida oculta, mas não justificava abandonar um para dedicar-se apenas ao outro. A respiração pesada foi se aliviando e do outro lado da linha se ouviu um nariz sendo assoado.

- V-você t-tem razão - um ataque de lucidez? - E-eu... o quê eu tô fazendo?

- Sinceramente? - O tom seguia áspero - Eu não faço a menor ideia.

- M-me leva pra casa?

- Desculpa, Érika... mas não vai rolar - Janaína soltou um profundo suspiro - Preciso ficar de babá.

- Eu... 

Apesar do ódio e da vontade de abandonar, Janaína jamais deixaria uma pessoa na mão, mesmo que fosse uma tremenda filha da puta. Tinha horas que ela odiava esse gênio herdado de seus pais, mas era isso que a tornava a única pessoa que Helena confiava.

- Me passa o endereço de onde você tá - Janaína olhou a lua sair de trás de uma nuvem - E o endereço da sua casa, vou mandar um carro... depois disso não me procura mais até resolver sua vida... cara, eu fucei a rede social do seu marido e você tem uma família maravilhosa, aproveita isso e agradece a deus pela dádiva que você recebeu.

- E-eu... - o choro era extremamente audível do outro lado - Obrigada.

- Tudo bem, você tem cinco minutos para mandar os endereços, se não mandar eu mando descobrir onde você está e mando seu marido ir te buscar.

- Não precisa - Um dos endereços acendeu a tela do celular de Janaína - Eu... vou arrumar isso... não sei como, mas vou dar um jeito.

- Vai sim, você é capaz. 

- Tomara que seja mesmo... - Érika digitou e enviou o outro endereço - Mais uma vez obrigada.

- Tudo bem, agora resolve tudo isso - Janaína suspirou - Tchau.

- T-tchau.

E o silêncio se fez com o fim da ligação. Janaína enviou um carro e monitorou todo o trajeto, era incrível como ninguém conseguia rastrear Érika tão perto de casa, meia dúzia de bairros distante. Quando a corrida chegou ao destino julgou sua missão cumprida, agora era com Érika. Por dois segundos pensou que Helena havia feito basicamente o mesmo de fugir de casa... porém sem deixar marido e dois filhos.

- Difícil ser super-herói em tempo integral hem - Helena estava sentada no degrau entre a varanda e o pequeno pátio - Mas você tem potencial.

- Você acha? - Janaína se virou desligando a tela do aparelho - Aliás, desde quando você está aqui?

- Desde a parte do "eu sou babá" - Helena olhou para a lua, sorriu finamente retirando a toalha dos cabelos - Eu sou um fardo muito pesado pra você, Jana?

- Até que não... - Janaína se sentou ao lado da amiga - ... você é levezinha.

- Eu tô falando sério, Janaína Barcelos.

- Não é, Helena Vicent Stewart, não mesmo.

- Por isso que eu te amo - Helena virou o olhar para a amiga ao seu lado, ao passo que Janaína fez o mesmo. - Você mente duma forma que eu acabo acreditando.

- Mas é a verdade, sua besta - Janaína se levantou oferecendo a mão - Vem, vamos bolar um jantar.

- ... ou pedir uma pizza.

- Oh Hell, a vida não é só pizza - Helena se levantou seguindo a amiga para dentro - Tem macarrão também, você faz o molho enquanto eu tomo banho.

- Feito.

- Mas antes uma coisa... - Janaína parou na porta entre a cozinha e o corredor que terminava no banheiro - ... é bem sério e eu preciso te dizer.

- Que foi?

- Eu te amo, Helena.

- Eu também te amo, Janaína... - Helena sorriu se sentindo completa, não precisava de muito mais do que tinha agora - ... agora vai tomar banho pra tirar essa zica da Érika, anda, xô.

- Nossa, mó quebra clima.

Ambas riram enquanto Janaína ligava o chuveiro sentia o cheiro de cebola refogando. Era bom ver Helena nesse momentos. Que assim conserve até o momento que fosse avisar para a família dela que ela estava bem e que eles eram o problema. Se sentiu idiota por mandar uma pessoa voltar para o seio familiar enquanto mantinha outra afastada. No fim as duas podiam ter inúmeros problemas... o que diferenciava Érika de Helena? Janaína apenas conhecia a história de uma mais a fundo do que a outra. Talvez tivesse feito merda. Quando sentiu uma nuvem estacionar sobre sua cabeça duas batidas na porta do banheiro a despertaram, ela anunciava que o molho estava pronto e alguém tinha que fazer o macarrão. Janaína sorriu, a vida era tomar decisões e não se arrepender. Ela tinha tomado a dela e dito o que achava certo para Érika, se ela absorveu tudo errado, o problema não era mais dela. Fechou o chuveiro colocando um pijama e enrolando os cabelos em um coque. A vida era isso e agora tinha de cozinhar macarrão.

domingo, 3 de março de 2019

Despertar

Janaína não se lembrava onde havia largado os fones de ouvido, a última lembrança era a cama, caminhou a passos rápidos até o quarto e, enquanto girava a maçaneta sem cerimônia alguma lembrou-se que não morava mais sozinha, mas a ordem já havia sido dada para o cérebro, porém outra ordem sobre-escreveu a primeira: entrar e fechar a porta em seguida. 

As cortinas dum pano carmim filtravam a luz do sol e deixavam o ambiente em tons que iam do bordô até o rosa, que era o que iluminava o rosto de Helena que dormia com um sorriso quase enigmático. De repente a busca pelos fones de ouvido se tornou tão pequena diante daquela menina, daquela mulher dormindo ali, tão serena, tão doce... tomando o máximo de cuidado Janaína tirou do bolso da saia o telefone e tirou uma foto que não refletiu nem um décimo da beleza da cena. 

Sem saber porque se encostou na porta fechada do quarto e sentou no chão tentando imaginar com o que a amiga sonhava. As lembranças que deviam se passar pela cabeça dela, as dores, os traumas, as neuras... sem entender muito bem porque, quando deu por si novamente Janaína estava com os olhos rasos em lágrimas vendo Helena dormir como, por certo, a muito não dormia. Se lembrou daquela noite, para variar estava tendo o mesmo pesadelo do acidente, do carro, das cobranças, das vozes, de como gritou pra que se calassem e de acordar com o interfone. O porteiro da madrugada a chamava com urgência.

Em um piscar mais demorado toda aquela cena veio como um flash. Largou o interfone no ar e saiu porta afora de camisola, descalça entrou no elevador. Térreo. Desceu. Ao chegar o rapaz havia acomodado Helena em um sofá que havia na portaria, os olhos dela fechados, uma baba viscosa corria pelo canto da boca da moça. Por um instinto Janaína foi checar a testa. Ela estava fria, sem saber exatamente porque checou o pulso, aquelas milhares de horas assistindo seriados teriam de valer alguma coisa. Parecia fraco. Quando questionado o porteiro se limitou a dizer que um carro prata parou e jogou ela pra fora. Sentiu ódio por não conseguir rastrear o tal carro e poder socar a cara de todos aqueles desgraçados. Sua respiração ficou pesada um instante, trincou os dentes. Helena se moveu um pouco sem despertar e dissipou toda aquela raiva de Janaína. 

Os dias que se seguiram foram tão terríveis quanto aquela noite. Os médicos diziam não poder garantir se ela voltaria e, muito menos, se teria alguma sequela ou coisa do tipo. Foi só no segundo dia em que Helena não acordava que alguém lhe disse que era uma overdose. Janaína se sentiu terrível naquele momento. Como pode deixar que sua partner in crime cair tanto assim? E como não notou os sinais? Por sorte as enfermeiras foram com a cara dela e a deixavam dormir no mesmo quarto, em uma poltrona. Enquanto via os sinais vitais claudicantes Janaína abraçava os joelhos e chorava. Nada mais fazia sentido. Quase chegou a prometer para algum santo da capela do hospital qualquer coisa para que a amiga voltasse. 

Ela não comia, não bebia, só ia ao banheiro. Uma das enfermeiras lhe disse que tinha que se cuidar para quando Helena acordasse a visse bem. Foi só no terceiro dia que voltou a cuidar de si, ainda que minimamente e foi, no quarto dia, que Helena abriu os olhos e disse o quanto odiava ver Janaína chorar, ainda mais sabendo que ela se achava a causa. 

Abriu os olhos despertando daquela lembrança. Deu uma rápida olhada para cima e agradeceu aos céus por ter tido essa oportunidade de fazer mais por alguém e agradeceu de novo por esse alguém ser Helena. Nunca foi de religião nenhuma, mas, naquele momento, agradeceu a deus por tudo até aqui. A paz que sentiu dentro de si lhe preencheu como nunca havia se sentido completa e, sem saber bem porque, deixou que as lágrimas rolassem.

- Odeio te ver chorar - Helena estava com os dois olhos abertos, porém não havia movido um músculo além dos que controlam as pálpebras - Me sinto errada... de novo.

- Você não é errada - Janaína limpou as lágrimas - Eu estava chorando de alegria.

- Alegria? - Helena arqueou uma das sobrancelhas - Conte-me mais.

- Ah... - Janaína suspirou com um sorriso nos lábios - ... te ver dormindo assim é tão... lindo sabe? Te ver bem faz eu me sentir útil...

- Lá vem você com isso - Helena deu um pulo pro lado - Vem cá que vou mostrar sua utilidade.

- Assim, no meio do dia? 

- Problems, where? - Helena notou que Janaína estranhou a proposta - Vai lá, fecha a casa, eu te espero...

Ainda um pouco contrariada Janaína levantou do chão e saiu do quarto deixando a porta aberta. Sabia que, quando Helena propunha algo assim, ela não podia negar, até porque ela sabia que ela também precisava disso. Era biologicamente necessário. Trancou a porta, colocou o cadeado na única janela que havia aberto. Na volta para o quarto pegou uma garrafa de água, afinal não precisar sair do cômodo naquele momento tão delas era crucial. Voltou ao quarto deixando a porta só encostada, afinal podiam precisar sair correndo para o banheiro.

- Pronto - Janaína deixou a garrafa do lado da cama pedindo espaço para se deitar ao lado de Helena - Enfim sós.

- Oba! - Helena abraçou Janaína que abraçou de volta roubando um selinho - Gostei disso.

E, sem se preocupar com mais nada ao seu redor, como se toda a criação houvesse parado para que as duas pudessem vivenciar aquele momento em sua plenitude não se ouviu, naquele resto de dia, nenhuma buzina, nenhuma sirene, nenhum carro com som alto, nenhuma voz vendendo algo na rua. Os únicos sons que se ouviam naquele instaste raro eram de alguns carros ao longe, de pássaros no telhado e da respiração de Helena e Janaína se acalmando aos poucos até que, enfim dissiparem os pensamentos ruins com uma das atividades mais básicas de todo ser vivo. Com um sorriso fino ambas se permitiram dormir no meio de uma tarde de terça-feira.