sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Aos 33

Então chegou a única postagem que, não importa o que acontecer, vai sair no dia e hora programada: a postagem encerrando o ano e fazendo meus desejos ao ano vindouro.

Caramba o que foi esse ano né? Quer dizer, ainda tá sendo. Mas vamos começar pelo começo: apesar de registrado e a venda (não na amazon, tio Bezos não me aceitou, seila porque caralhas) meu livro vendeu zero. Algumas pessoas receberam de graça mas só uma leu... Não sei vender minhas coisas. Bem dizem que casa de ferreiro espeto de pau.

Depois, umas duas semanas depois de entrar em vinte vinte (ou dois mil e vinte, vulgo esse ano) eu consegui um emprego! Finalmente um dinheirinho entrando fixo na minha conta todo mês e fazendo o que eu gosto. Tava tudo bem até vir essa pandemia, mas dela falo mais depois.

Com dinheirinhos fixos entrando eu resolvi ir atrás de: terapia. Não sei se eu é que dei sorte, mas de cara consegui uma terapeuta muito boa, que me deixou super seguro pra falar muita coisa que eu tava querendo dizer, abrir/mostrar coisas que eu precisava ver a reação de outro serumano sem ser via uma tela e foi...  Transcendental (ufa, esse ano não escrevi "mágico" haha), pessoas se vocês quiserem uma única dica minha é: façam terapia. Melhor investimento da vida de vocês.

Dentre as muitas coisas que aconteceram a mais incrível e inesperada foi a pandemia, é como diz o meme "cansei de viver um evento histórico". A merda é que o coronga acabou levando com ela meu emprego... Então eu arrumei um trampo e perdi um trampo nesse ano. Fiquei triste? Fiquei, triste? Pra caralho, mas é como disse minha prima: dessa vez eu fui até o fim, não desisti no meio. Vida que segue.

Consegui manter a oficina dos carrinhos com uns projetinhos novos, nada muito wooow mas refinei umas técnicas, fiz uns projetinhos legais. Mas, como tudo esse ano, fiz mais pra mim do que pra sair postando. O mesmo vale pros escritos: apesar de ter pouca postagem esse ano eu escrevi até bastante, mas não postei nada porque... Esse ano ta doido.

Depois disso tudo eu sinceramente não sei o que esperar do ano que inicia agora, mas espero que alguns planos saiam do papel e outras coisas (tipo escrever e a oficina) se mantenham ativas na medida da vontade (afinal é quase um hobby) e que consiga algumas coisas que eram pra ter sido continuadas esse ano mas né, coronga.

Vai parecer história de pescador, mas no dia que saí do trabalho eu fui nos molhes (o canal onde entram os navios pro porto) e esse navio tava entrando... Achei que nunca fosse ter um navio preferido na vida, mas agora tenho. Nunca fui de acreditar muito nisso, mas olha o nome do navio... Parece muito aquela coisa de filme que dali pra frente vai ser um ponto de virada.


"ever smile" ou "sempre sorria" numa tradução googlistica

A grande e imensa verdade é que já não tenho mais todo aquele ranço de fazer aniversário, porém não tenho lá muitos motivos para comemorar e, pra ser sincero, eu não ando sentindo nada nas coisas que faço, as coisas ruins são rápidas, as boas são prazeres tão efêmeros quanto um por-de-sol... espero, de coração, que essa nova volta ao redor do sol melhore isso de alguma forma.

Alea jacta est.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Gotas de Delírio

Trovões no céu, um corpo ensanguentado no chão e no ar o cheiro de pólvora completava o ambiente hostil. Nathália tentava se lembrar como tinha vindo parar ali. Tudo era um grande vazio na sua mente. Não era a primeira vez que usava uma droga que lhe alterava a percepção do ambiente ou até mesmo do tempo. Balançou a cabeça negativamente notando as duas tranças, uma de cada lado, que ornavam seu cabelo preto.

Lembrou da primeira regra pós uso de alguma droga nova: Pensar no que se lembrava. Enquanto tirou da bolsa o celular desligado procurava com a ponta dos dedos a bateria extra que sempre trazia consigo. Teria de esperar alguns minutos até poder religar o diminuto aparelho. Olhou em volta buscando alguma explicação. Fora o cadáver não tinha muita coisa.

Uma poltrona onde ela estava, alguns quadros desses de artistas de rua com paisagens genéricas, uma mesa próxima da janela com um abajur e uma cortina marrom clara com desenho de pinheiros. As paredes de madeira diziam que ou era uma casa velha ou era uma casa de rico, nunca vai ser o meio termo. Com certa dificuldade ficou em pé dando o primeiro passo.

Trajava uma saia preta com adornos dourados, uma blusa curta que lhe deixava tanto a barriga quanto os ombros a mostra, nos braços diversas pulseiras, nos pés uma sandália rasteirinha atada tanto no peito do pé quanto no tornozelo. Os dedos traziam seus vários anéis, cada qual com um significado próprio.

Tomando cuidado para não pisar no corpo foi na direção da porta, não sem antes dar uma boa olhada na figura falecida. Parecia um efeito especial de filme ruim. Se inclinou sutilmente na direção do corpo masculino tentando reconhecer a figura. Nada. Nenhuma lembrança. Mas o ventre perfurado por diversos buracos contava uma história. Talvez um tiro de espingarda ou vários tiros de outra arma. O sangue em estado que aparentava estar seco lhe deu o último ponto básico de que aquela história havia ocorrido já tinha algum tempo.

Por mais estranho que pudesse ser não se abalou tanto em deixar o morto ali sozinho, afinal, ele já estava morto. Que mal haveria de ter? No máximo quem fez o que fez viria para tentar apagar as provas. Girou a maçaneta pouco mais de quarenta e cinco graus.

O primeiro passo fora do cômodo foi estranho, não saberia dizer se era a luz, o cheiro ferroso pairando no ar, os sons agudos oscilantes misturados a um barulho de algo batendo. Tudo pareceu tão ruim que ponderou um instante em ir adiante ou ficar ali. Podia aguardar o algoz do companheiro de quarto e ver se o destino guardaria para si algo melhor que para ele.

Não. Deu o próximo passo e todos os sentidos foram sobrecarregados, muita luz, muitos cheiros, muitos sons... dois segundos de síncope e tudo voltou ao normal. Estava no mesmo quarto. Na mesma poltrona. Ao lado do mesmo corpo. Se questionava se não podia ser efeito da droga que tinha tomado. De uma coisa tinha certeza: Fosse o que fosse logo o efeito cessaria e tudo voltaria a ser como era.

Tinha duas opções bem claras agora: Seguir se movendo durante a viagem e, no mundo real, acabar atropelada por um ônibus ou ficar onde estava correndo o risco acabar morta como a figura ali do lado.

Ônibus. Morta. De repente essas duas palavras acenderam na sua mente como dois pequenos pulsos. Perfeito. O efeito estava passando e já podia reencontrar a realidade. Esfregou as mãos no rosto. Uma vez tinha ouvido falar que tocar em si mesma durante o uso de alguns tipos de droga fazia uma ponte mais sólida com a realidade.

Conforme piscava tinha a impressão de que a cortina mudava de cor. A poltrona mudava de cor. A única coisa que seguia igual era o sangue no chão. Então ele era a única coisa real ali. Pelo menos era isso que Nathália imaginava. Resolveu tentar sair do cômodo novamente.

Passo. Pulou o cadáver. Passo. Girou a maçaneta. Passo. Luz branca. Passo. Sons altos. Passo. Cheiro ferroso. Passo. Síncope. Sentiu uma forte pressão no peito. Passo. Fechou as pálpebras. Passo para trás. Abriu os olhos.

Não estava mais na poltrona. Pronto. Acabou. Outra perspectiva. Não conseguia mover o corpo. Só os olhos. Tentou distinguir o que estava vendo. Pés. Uma parede... a lateral da poltrona. Quando tentou afastar os lábios o movimento de uma figura humana chamou sua atenção. O som da porta se abrindo juntamente dos passos lhe trouxe uma realidade incômoda: estava no chão. Será que...?

Com esforço moveu a cabeça o suficiente para ver que era ela o cadáver no chão. Mas não estava morta. Estava? Não conseguia conectar os eventos entre si. A sombra que passou sumiu porta afora. O silêncio perdurou durante dois segundos exatos, em todos os seus décimos, centésimos e milésimos. Uma grande pressão como se o teto desabasse em cima de Nathália a fez fechar os olhos de súbito. Quando abriu estava no mesmo lugar no chão.

Abriu os olhos. Passo. Poltrona. Passo. Ruídos baixos. Passo. Sem memória. Passo. Porta abrindo. Passo. Silêncio completo. Passo. Teto desabando. Acordou na poltrona. "Mas que porra é essa?", tentou se mover. O corpo estava inteiro. Checou tudo em volta antes de se levantar. O cadáver estava ali. Seu inconsciente dizia para ir na direção da porta. "Não!" pensou em voz alta. 

Com o cuidado de quem já tinha visto filmes de terror suficiente se aproximou do corpo supostamente morto, se abaixou tentando esquadrinhar um detalhe, algo que pudesse servir de pista para dizer onde estava. O cadáver estava de ventre rasgado e olhos abertos. Desceu mais seu rosto na direção do dele quando os olhos se moveram na direção dela.

O susto inicial logo deu espaço para a lógica: ele não estava morto. Mesmo tendo perdido tanto sangue. Não via uma solução plausível. Tentava pensar. Nenhuma resposta vinha à sua mente. Os lábios dele se afastaram.

- Vo-você quer alguma c-coisa? - Sua voz estava diferente do que se lembrava - O-onde estamos?

- Ônibus.

- Que? - Nathália se aproximou - Você sabe onde estamos?

- Ônibus.

Tentou lembrar de todos os filmes em que o fantasma falava uma única palavra e todas as vezes era algo relacionado à sua forma de morte. Então ele foi atropelado por um ônibus e largado ali? Mas estava em uma casa de madeira. Olhou em volta... tudo convergiu pro branco.

- Nath?

- Quem...?

- Nathália, não brinca comigo - Conhecia a voz, a silhueta mas não conseguia... o morto, se afastou de súbito - Que foi véi?

- Que... - Aos poucos todas as suas memórias voltavam e os pontos iam se aglutinando como partículas formando planetas ao redor de um disco de poeira estelar - Onde eu tô?

- Em um ônibus - A visão foi reconhecendo o ambiente e tomando forma, o cheiro ferroso vinha das péssimas condições da manutenção feita no transporte coletivo que atendia aos bairros mais afastados da Metrópole - Indo lá pra casa... cê ta bem?

- Não... quer dizer... sim... quer dizer... não sei.

- Eu disse pra você não tomar aquilo.

- Aquilo...?

- É, na rua andam chamando de gotas de delírio, coloca na bebida e você vai ter a viagem mais insana da sua vida.

- Mas... eu tomei isso fazem horas... ou não?

- Sim - Ele se ajeitou no banco, só agora Nathália se deu conta de que estavam na última fileira de bancos de um ônibus onde duas pessoas estavam sentadas próxima do cobrador e uma mãe e criança estavam na porta prontas para descer - Não fez muito sucesso na rua por fazer efeito muito tarde, isso quando faz.

- Quanto tempo eu...?

- Ficou chapada? - Ele sorriu de canto - A gente entrou no ônibus, sentou, você piscou, achei que ia dormir, paramos em um ponto, umas seis pessoas desceram falando de uns papos de morte e tals, mó sinistro... aí você acordou.

Como se fosse um vídeo acelerado toda a noite veio em sua mente. Saiu de casa, encontrou com seu namorado, Pablo, foram em uma casa noturna, bebeu um drink que tinha uma fatia de abacaxi. Colocou duas gotas da droga que queria saber se o efeito aparecia com música, pois nas repetidas vezes que tentou em casa nada acontecia, pensou que o ambiente barulhento pudesse lhe trazer novas sensações. Se frustrou quando nada aconteceu, como estava a meio caminho de casa e a meio caminho da casa de Pablo resolveu passar a noite com ele. Como naquela região carros de aplicativo raramente aceitavam corridas foram de ônibus. Diversas pessoas saindo de um culto, ternos, mulheres em vestidos de altura média, sem decotes e bíblia na mão. Em uma freada brusca o efeito esperado chegou.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Plata II

Abri os olhos sentindo meu corpo leve. Respirei fundo e... Nada. Não sentia meus pulmões enchendo ou esvaziando. O que está acontecendo? Espera. Eu acho que conheço aqueles dois ali embaixo. Pai? Mãe? Espera. Embaixo? Olhei para o lado e uma lâmpada cegou minha visão por alguns segundos. O que estava acontecendo? Espera... Não vai me dizer que... Não. Não. Não. Eu não posso morrer ainda. 

Vamos descer e voltar pro corpo. Se isso fosse como nos filmes eu entraria e acordaria do coma. Perfeito. De repente esse quarto parecia tão alto. Ou eu que descia devagar? Tentei forçar o corpo. Não tinha jeito de ir mais rápido. Quando estava quase chegando uma barreira me impedia de me tocar. Droga. Pensa. Qual foi a última coisa que eu me lembro? 

- Não adianta tentar lembrar - A voz vinha de um homem sentado próximo da janela, sobretudo, chapéu - É recente, mas com o tempo tudo vai se encaixar...

- Como você sabe? Aliás, quem é você? Como consegue me ver?

- Não é meio óbvio? - Ele sorriu dando um sutil peteleco na aba do chapéu revelando um rosto de um homem, uns quarenta anos, cabelo preto - Te dou três tentativas.

- Um anjo? Demônio? Ceifeiro? Deus? Diabo? 

- Pra quem acabou de chegar nesse plano você fala muito rápido - Do bolso interno do casaco saiu um palito que ele colocou no canto esquerdo da boca - Você errou todas as opções, eu sou apenas um detetive...

- ... Sobrenatural? - interrompi, parecia clichê - Esses trejeitos são meio noir, até um pouco... Caricatos.

- Na verdade - ele tirou o palito com a ponta dos dedos e se aproximou - eu sou uma representação do que você considera um detetive e estou aqui para lhe ajudar a solucionar quem te deixou assim.

- Então eu... Morri?

- Não, ainda não - Ele se aproximou oferecendo a mão - Vamos? Temos muito a fazer... A propósito, meu nome é Gustavo... E eu sei quem você é - Correspondi à mão estendida - agora vamos... Qual a última coisa que se lembra?

- O céu nublado... Acho que era quinta feira - Comecei a forçar a memória enquanto saíamos levitando pela janela - Nas quintas eu gosto de tomar um café perto de casa... - Fechei os olhos sentindo o gosto da bebida quente na garganta - De manhã tinha aula de história do cinema e técnicas cinematográficas, a tarde eu fazia um estágio na cinemateca da província de Buenos Aires e a tarde tomava um café antes de ir para casa... Casa... Moro em um prédio meio velho na alameda próxima ao edifício da Corina Kavagnah, no oitavo andar... Contrafrente, oito zero oito E...

Como se fosse um passe de mágica cá estávamos eu e Gustavo dentro do apartamento. As lembranças vinham como flashes. Havia mais alguém. Cabelo castanho. Não conseguia definir a imagem quando o trinco girou e dois homens entraram. Um deles - Aguilar - dizia que não entendia porque procurar algo afinal era uma tentativa de suicídio que deu errado. O outro - Martin - dizia que era o protocolo e precisavam procurar pistas, que a família dizia que ela não dava nenhum sinal disso.

- Você tem que me ajudar - Me virei para Gustavo que caminhava ao lado dos policiais procurando qualquer pista - O que eu faço?

- Não sei, moça - Ele me olhou - Você não tem fotos? Cartas? Uma anotação que seja...

- Tenho, claro que tenho... - Fechei os olhos tentando me lembrar, pensa, pensa, pensa - Está tudo nublado na minha memória...

- Esse notebook - Martin erguia o computador portátil completamente destruído - Já viu dias melhores...

- O que você diria? - Aguilar se aproximou - Briga? Dia de fúria?

- Os vizinhos relataram alguns gritos, mas nada que fosse anormal... Afinal ela é jovem, bonita... - O policial checava as anotações - Também ouviram som de furadeira...

- ... Que foi o que encontrou esse notebook - O outro policial seguia caminhando a passos lentos, tentando achar alguma pista - Será que foi coisa de droga?

Não vou dizer que sempre fui puritana, mas jamais usaria droga a tal ponto. Só agora havia me dado conta de que eu estava com a mesma roupa que me lembrava. Apalpei os bolsos. Bolso de trás. Do casaco. Da calça. Nem sinal.

- O que procura?

- Meu... - A cabeça doía ao tentar lembrar - ... Me fugiu a palavra, como se ficasse nublado.

- É importante?

- Sinto que é... Só que sempre que eu penso fica tudo nublado.

- Nublado... Pode ser uma pista - Gustavo guiou o palito de um lado para o outro da boca - Nublado é cinza, chuva, nuvens, frio...

- ... O que você disse? - Um estalo - Cinza, chuva...

- Nuvens.

- Puta merda, nuvem, isso! - De repente tudo fez sentido - Eu guardo muita coisa na nuvem... - Ao notar a cara estranha de curiosidade do meu acompanhante completei - ... Na internet, tipo uma pasta guardada em outro lugar.

- E como que faz para ver essa nuvem guardada em outro lugar?

- Precisa do meu...

- ... Aguilar, achei um celular.

- Daquilo.

- Ainda tem bateria? - Aguilar se aproximou do parceiro e vendo que a tela ligava prosseguiu - Tem senha?

- Senha? - Gustavo me olhou enquanto eu tentava lembrar - Como abre tal nuvem?

- A minha senha é onde moro... Sempre usei isso, assim nunca esquecia... Tem como eu falar com eles? Digo, sussurrar tipo nos filmes...

- Só se sua vontade for forte o suficiente...

- Não custa tentar...

Me aproximei de Martin e tentava falar a senha. Ele, ao contrário do que eu queria, evitava tentar alguma forma de de desbloqueio com medo de travar o aparelho inteiro. Aguilar vasculhava o quarto enquanto o policial com meu telefone se aproximou da porta. Parando diante do letreiro com o número do apartamento. A plenos pulmões gritei que essa era a senha. De repente tudo escureceu e ficou branco logo em seguida.

- Meu deus -conhecia aquela voz - ela acordou!

- Beatriz - Esse é o nome da minha mãe - Ela acordou!

- O que... - De repente todas as partes do corpo deram sinal ao mesmo tempo me trazendo desconforto - ... Aconteceu?

- Não se preocupa com isso agora filha... Você voltou para a gente e é isso que importa.

Alguns dias se passaram e já me sentia mais forte. Foi quando uma psicóloga veio me falar da morte dos meus amigos, todos envenenados, chorei lembrando de tudo até a quarta feira. Depois disso era nublado. Uma semana se passou e dois policiais vieram falar comigo, preencher lacunas. Como se fosse um choque todas as lembranças daquela quinta feira veio de uma vez só.

Depois da aula passei a tarde na cinemateca. Um grupo de estudantes queria saber de filmes gravados em Buenos Aires no último ano. Acompanhei eles até o acervo. Ao fim do meu expediente passei no café onde Camila trabalhava. Ela não aparecia faziam dois dias, voltei pra casa e ela estava me esperando, dizia que agora ninguém ia impedir nossa felicidade. Falando agora lembro de vários ataques de ciúme dela com meus amigos. Já tínhamos brigado muito sobre isso e ela sempre prometia que se controlaria mais dali pra frente. 

Só que naquela quinta feira nada disso aconteceu. Sob pretexto de uma festa surpresa atraiu todos os meus amigos para o apartamento e deu gelatina com veneno. Vi a cena dos corpos empilhados na banheira. Não sei como ainda tive sangue frio e tirei inúmeras fotos daquilo. Deixei o celular gravando a conversa que teríamos, mas não tive tempo. No áudio recuperado pude ouvir o exato momento em que ela me apagou e ficou balbuciando que tudo poderia ser melhor, por que eu tive que estragar tudo? Depois o som da furadeira, do armário abrindo, fechando, zíper de malas, a porta da sacada e o som do meu corpo sendo arrastado seguido da porta principal abrindo, fechando e sendo trancada.

De acordo com a investigação eu só não morri porque caí em cima de um jipe com teto de lona. Fraturei seis costelas, perfurei o pulmão, quebrei as duas pernas, o quadril, o braço direito além de um traumatismos cranianos. Fiquei seis meses no hospital até me recuperar bem.

Graças aos meus registros e as fotos que eu guardava na nuvem conseguiram localiza-la já próxima da fronteira com o Chile. As informações ne foram trazidas pelo prestativo policial Martin.

- Não sei de vai acreditar... - Ele me confidenciava com os faces ruborizando sutilmente - Mas quando achei seu celular algo me disse a senha e consegui achar uma foto sua com ela e o carro... Dali foi um pulo até a captura dela.

- E se eu falar que eu estava lá e te ajudei?

- Não vou duvidar...

- ... só que eu não estava sozinha - Minha vez de sentir meu rosto arder em vergonha - Tinha um detetive, com chapéu, sobretudo e sempre mascando um palito.

- Um... Palito? - Martin pegou a carteira abrindo e me mostrando uma fotografia - Era ele?

- C-como você... - Senti minha pressão baixar subitamente, retomei o controle do meu corpo - Q-quem é ele?

- Meu avô, foi policial nos anos de 1930 e 1940... - O sorriso em meus lábios misturava-se às lágrimas - Ele faleceu naquele hospital, a viatura dele caiu no rio, quando trouxeram levaram para o hospital ele aguentou mais alguns dias e não resistiu... Mas a busca dele por ajudar as pessoas foi algo que me inspirou a entrar para a polícia sabe?

- Vai parecer doido... mas... Qual era o nome dele?

- Do meu avô? - Martin deu uma olhada na foto, assenti com a cabeça - Ele se chamava... Gustavo.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Plata

Eu não acredito que perdi o controle de novo. Merda. E o foda que estávamos tão bem e de repente tudo desmoronou tão rápido que não consegui evitar aquele final. E não era a primeira vez. Bem feito, Camila, quem manda se apaixonar. Não pode só chegar em um lugar e ficar de boas, não, tem logo que arrumar namoricos que colocam tudo a perder.

Mas também agora não importa mais. Era incrível como a única coisa que aquele inútil do meu padrasto me deixou podia ser tão linda. Esse Opala ano 1974 rodava macio na estrada, o ronco baixo parecia um ronronar, velocímetro travado próximo dos cem quilômetros por hora fazia a paisagem passar rápido pela janela lateral. Seta, faixa da esquerda, acelera. O ronco encheu a cabine junto com o cheiro de álcool que alimentava as seis bocas do motor. Mais um ônibus ficou para trás.

Dessa vez vou mais longe, me impor uma barreira diferente: o idioma. Chequei o mapa no posto de combustível. Só mais seiscentos quilômetros. Em uma conta básica seis horas. Na realidade um pouco mais, talvez um dia inteiro, só eu, o Opala e a estrada. 

Buenos Aires parecia um bom lugar para se recomeçar. De novo. Verdade seja dita, eu nunca quis que isso tomasse a proporção que tomou. Quando eu dava por mim já estava obcecada. Fúria total. Hotel barato de beira de estrada aqui em nada lembra os que eu via nos filmes. Alguns tinham um restaurante outros eram ao lado do posto. 

Com os primeiros raios de sol rompendo a espeça camada de nuvens peguei a estrada. Cada quilômetro rodado era a esperança de que tudo pudesse começar e eu pudesse ficar em paz. Fronteira. Documentos meus. Do veículo. Tudo em ordem. A cidade parecia envolta em uma aura noir quando estacionei em frente do hostel que seria meu lar por alguns dias. Garagem segura. Logo na manhã seguinte consegui um emprego legal em um café. "Brasileña? Tenemos muchos turistas acá y creó que podría ayudar con ellos". Claro. Pareceu ótimo.

Não que eu não gostasse do emprego. Mas como fazia questão de não querer conhecer ninguém passava a maior parte do meu tempo livre no café, era um local silencioso, a quantidade de chás que eles tinham supria minha curiosidade fora que era próximo o suficiente do pequeno apartamento e de uma das maiores livrarias do mundo. Foi em um passeio por lá que encontrei um livro que tinha ouvido falar no ensino médio. Em português. Quais as probabilidades dum livro em português estar em uma livraria de Buenos Aires? Muitas se considerar que eu gostava de fuçar a área do sebo.

Oito meses e já me sentia completamente adaptada à cidade. Mesmo o clima que muita gente reclama já não me causava incômodo.  Estava nas últimas páginas do livro que tinha comprado quando ela apareceu. Em um castelhano horrível perguntou se eu era brasileira. Respondi que sim, em espanhol. Rimos. Ela perguntou se podia sentar. Pediu um chá. Conversamos sobre o livro. 

Letícia. Fazia faculdade de cinema. Cabelos lisos, pretos. Olhos levemente puxados. Sempre com um short jeans curto que deixava as duas tatuagens na panturrilha expostas. Um cacto e um cacto em flor. Uma camisa xadrez por cima do top escuro completava o visual. Eu não controlava mais nada. Quando notei já estávamos morando juntas. Dividindo a cama e todos aqueles amigos com direito de abraçar. Ficar próximo. Rir sem eu estar por perto. Merda. De novo não. 

A vantagem de não ser a primeira vez é que você já sabe como tirar o sangue das mãos e se livrar de tudo. Melhor ir dormir. Amanhã tinha mil e cem quilômetros pela frente.

Chile. Santiago.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Álibi s3e1: Arquivo

- Alice, vai dormir - A voz vinha de Sueli, sua mãe, parada no batente da porta - Já vai raiar o dia e você ainda está nesse computador.

- Já vou, mãe... só estou vendo uma coisa aqui...

- Você disse isso meia noite, são seis e meia da manhã.

- Já? - Alice olhou pela janela e o céu amarelava-se ante aos primeiros raios da manhã que surgia no horizonte - Vou dormir um pouco...

- E o emprego?

- Eu só entro a tarde, negociei e agora entro depois do almoço e fico até de noite.

- Entendi - Sueli foi se afastando cobrindo um bocejo com a mão - Não gosto de você sozinha na rua a noite, ainda mais com aquele troço barulhento.

- Troço barulhento? - A jovem salvou o que digitava ferozmente até alguns minutos atrás - Fala da minha moto?

- É, aquela merda que o inútil do seu pai deu, como se isso fosse compensar os anos que aquele desgraçado ficou longe.

Alice nem se deu ao trabalho de responder. Na sua cabeça a relação da sua mãe com seu pai biológico era assunto de gente grande e que os dois, mais cedo ou mais tarde, precisariam sentar para resolver. Por isso ela nem ligou. Girando na cadeira que estava sentada deu um pequeno salto para, em seguida, cair na cama que não era arrumada faziam algumas semanas.

Piscou demoradamente e logo o despertador a tirou de uma tentativa de sonho. Tinha de resolver de uma vez por todas essa história, já tinham vários anos e nunca terminava, assim que saíssem as férias colocaria um fim em tudo isso. O problema é que já tinha se feito essa mesma promessa meses atrás, quando estava para entrar no período de folga das festas de final de ano.

Enquanto tomava um banho gelado relembrava ponto a ponto, tudo que já tinha conseguido, fosse por seu poder investigativo ou fosse pela sua lábia em conseguir acessos restritos aos arquivos da polícia. Verdade seja dita: Nunca acreditou na história dos jornais, quis ir um pouco além e ver o que tinha por trás da notícia e caiu em buraco negro infinito. Quanto mais cavocava mais longe do fim chegava. Por alguns instantes cogitou encerrar por ali, procurar alguma editora, publicar em formato de livro e, quem sabe, ganhar uns trocados a mais, porque se fosse depender do seu salário de jornalista morreria de fome. Se bem que para toda essa investigação gastava uma porcentagem significativa do seu ordenado mensal.

Almoçou respondendo reativamente para sua mãe que, ora lhe dava bronca por virar a madrugada, ora lhe falava das novelas, ora tantas outras coisas que a cabeça de Alice não estava ali. Por mais que ela considere aquela história a mais importante que já escreveu ela não deixava de trabalhar e pensar em tudo que a redação lhe cobraria naquele dia, talvez uma matéria sobre o trânsito (odiava o assunto), talvez algo sobre alguma chacina ainda mais agora que casos de corrupção andavam fora de moda...

Vestiu a pesada roupa de couro por cima da camiseta amarrotada e calça jeans com rasgo nas coxas e tênis baixo já colocando o capacete e subindo em sua motocicleta. O trânsito seguia lento para os carros, para ela não tinha diferença, passava voando e não se importava. Tão logo chegou na redação vieram lhe trazer um envelope pardo, sem remetente e cheio de papéis. "Uma matéria nova?" pensou enquanto Bruno, seu colega lhe chamava para a reunião de pauta. Mentalmente praguejou não poder ver o que era.

Nunca uma reunião de pauta durava menos de meia hora e nem passava de quarenta minutos, era o tempo exato para que o jornalista-chefe passasse todo o conteúdo para todos - umas oito pessoas - irem para a rua, pesquisar, correr e voltar com tudo pronto para revisão dele antes das oito horas da noite. No sorteio Alice acabou tendo que ir cobrir a repercussão de um campeonato de basquete do bairro vizinho, entrevistas os vencedores, os perdedores... tanto estagiário na redação e ela tinha que ir para umas coisas assim. Mas tudo é aprendizado, sempre ouviu isso de sua mãe e por conta disso não reclamava.

Entrevistando o capitão de cada time ela pensava na sua história principal. A que poderia mudar sua vida e que estava em standby por causa de algo tão banal quanto um emprego formal. E como o tempo é relativo tudo passou devagar, anotava as palavras, mentalmente formava o texto da matéria enquanto Bruno fotografava os jogadores diante do troféu. Parabenizou pelo campeonato, pela organização e pronto. Ao voltar para a redação fez tudo em um modo tão automático que não viu o tempo passar e nem mesmo lembrou do envelope em sua mesa.

Conteúdo revisado, enviado, revisado de novo, revisado mais uma vez e finalmente aprovado. Encaminhou para a diagramação que colocaria a matéria ainda hoje pois o dono do jornal era um dos patrocinadores do campeonato - Fato que Alice só soube depois e lhe deixou suavemente irritada - e por hoje era só. 

Passou pela sua mesa pegando a jaqueta de couro que repousava desde mais cedo na cadeira e o envelope lhe sorriu. Tomou-o entre os braços e seguiu para o estacionamento colocando no baú da motocicleta e rumando para casa. Eram dez horas e quarenta e seis minutos quando chegou. Sueli dormia no sofá com a televisão ligada. Alice a acordou e a colocou na cama. Não pretendia passar a madrugada acordada hoje, queria colocar o sono em dia.

Foi quando se lembrou do envelope. Sem remetente, sem nenhuma identificação, apenas seu nome. Com cuidado abriu e tirou o calhamaço de papel de dentro. Nada aparentemente tóxico, apenas um pendrive se fixou no fundo do receptáculo o que obrigou Alice a chacoalhar para que ele caísse. O conteúdo digital veria depois, puxou os papéis para perto, no topo um envelope pequeno e uma folha de caderno. Seu bichinho da curiosidade a atiçou.

"Olá, Alice.

Soube do seu interesse nesse caso e reuni algumas coisas que espero que te sejam úteis, ninguém aqui na DP tem interesse nesse caso e por isso resolvi que era melhor deixar que uma criatura esperta como você tomasse as rédeas disso e tornasse pública esta história, creio que trará paz não só as vítimas como também elucidará o caso fazendo o delegado que sempre considerou o caso encerrado seja processado por acobertamento.

No pendrive irá encontrar arquivos originais da época, fotos, dados periciais, alguns documentos e um começo de investigação que fiz e acabei em um beco sem saída. Espero que consiga encontrar aqui tudo que não consegui.

Atenciosamente,
F."

Pronto. Era tudo que ela queria para passar mais uma noite em claro. Uma parte dos papéis eram laudos e arquivos originais da polícia daquela história que tanto atormentava Alice. Fotos, detalhes que ela nem cogitou existirem, depoimentos, vídeos de câmeras de segurança, históricos, tudo ali, diante de seus olhos.

Fez uma térmica de café. Essa noite seria extremamente longa.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Tudo

- Seu olfato lhe enganou, raposa, não era Helena.

- Mas era alguém com cheiro parecido.

- Parecido não é ela.

- Eu ainda sinto - Podia quase ver Tsuki com o focinho levantado tentando aspirar mais o cheiro que ela dizia sentir no ar - Tem certeza?

- Claro que tenho!

- Falando sozinha de novo? - Helena veio da sala parando do meu lado - Ta ligada que pode ser sinal de esquizofrenia né?

- Vocês duas vão me enlouquecer um dia.

- Duas? - Ela olhou para os lados - Espera, vamos voltar e começar do começo... com quem estava falando?

- Você não entenderia.

- Tenta.

- Hoje não.

- Janaína Barcelos - Ela tomou a mão na minha - Negação é tão ruim quanto esquizofrenia.

- E desde quando você é psicóloga?

- Nossa - Helena soltou minha mão voltando para dentro de casa - Desculpa então.

- Pronto, Tsuki, satisfeita?

- Com o que? Você ser escrota com a única pessoa que te entende? - A vi se virando de costas para mim, se enrolando, dando um largo suspiro e dormindo. - Não coloca essa na minha conta não, Janaína.

Pronto. Agora a merda toda estada feita e eu ainda tinha um graveto pra mexer nela e fazer feder e espalhar ainda mais. Parabéns, Janaína. Dez horas de parabéns pra você. Trinquei os dentes pronta a explodir quando o celular no bolso vibrou. Um novo e-mail. E-mail. Quem ainda usa isso? Era uma resposta a um e-mail que enviei quase um ano atrás. 

"Prezada Janaína, tudo bom?

Meu nome é Roberto e eu sou locutor na rádio Princesa, seu pedido deu um certo trabalho de conseguir encontrar. No entanto eu me lembro da chuva daquele dia, por isso eu tinha uma vaga ideia do que toquei naquele dia. Depois de muito procurar acabei encontrando em um CD o backup da playlist daquele ano inteira, coisa que eu nem sabia que a rádio guardava. Enfim... no horário aproximado tocou essas três, espero que seja uma delas a da sua lembrança:

Titãs - Os Cegos do Castelo
Goo Goo Dolls - Iris
Rammstein - Ohne Dich

Espero que te ajudar. Precisando de mais informações estou por aqui, agora sei onde procurar haha

Atenciosamente, Roberto Silva."

Confesso que, de todos os e-mails que eu esperava hoje, esse era o último da lista. Talvez ele nem mesmo estivesse ranqueado. Uma dessas duas músicas estava tocando quando batemos. Eu lembro vagamente. Curioso como a memória trai a gente. Quando mais nova tinha feito aula de violão, desenvolvi um ouvido muito bom pra música mas não lembrava daquela música.

Entrei em casa. Porta do quarto fechada. Luz por baixo da porta. Helena cantarolava alguma coisa. Peguei os fones e fui para os fundos da casa. A cidade estava em um silêncio quase surreal. Quase apocalíptico. A única coisa que se ouvia eram algumas motos de entrega passando ora pra um lado ora pro outro. Me sentei na grama, o escuro da noite deixava o céu apenas para a estrelas.

Dei o play na primeira. Não era bem essa. Na segunda Uma orelha se levantou baixando em seguida. Quando o primeiro acorde da terceira música veio Tsuki acordou. O movimento rápido dela foi como de uma raposa real que caça para comer e acabou de ver uma lebre indefesa sair de sua toca.

- Essa música, menina - A voz oscilava entre o grave e o normal - Era essa música.

- Eu sei.

- Ela é bonita... pode repetir, por favor?

- Claro.

Perdi as contas de quantas vezes ouvi a mesma música. A conta perdida também era a de quantas lágrimas fugiram dos meus olhos. A noção do tempo também foi embora junto com todo aquele sentimento preso. Tinha de levar isso para a terapia.

- Sinto cheiro de...

- ... Helena.

- Como me ouviu chegar?

- Seu cheiro.

- Cheiro? - Ela riu enquanto eu, deitada no chão a via de cabeça para baixo - Tudo bem que eu estou suada, mas não é pra tanto... - Helena se cheirou - ... tá, tem um cheirinho, mas nada que possa ser tão absurdo e rastreável.

- Tsuki me falou do cheiro.

- Tsuki... - Ela se sentou ao meu lado - A raposa?

- A própria.

- Menina - Tsuki me cutucou - Confia nela, por favor.

- Tem certeza?

- Tenho.

- De novo falando com ela? - O olhar era mais curioso que julgador - O que ela acha de mim?

- Ela gosta de você.

- E o que mais?

- Tsuki pediu pra agradecer por cuidar de mim.

- Eu que agradeço por cuidar da gente, raposa.

- Hell - Tirei os fones - Preciso te contar uma coisa... uma história...

Hora do salto de fé. Respirei fundo tentando organizar todas as palavras antes de falar, quase como fiz na terapia, só que o divã era um gramado úmido, o teto era o céu e a terapeuta Helena Vincent. Falei tudo.

sábado, 14 de março de 2020

Ganido

Não há um momento exato em que surgi, talvez sempre estive aqui dentro adormecida, apenas esperando a hora certa para despertar e cuidar de você, menina. Eu sei que não gostas que te chamem assim, mas é como lhe vejo.

Posso não ter a memória exata de quando cheguei, mas lembro-me de quando tomei o controle a primeira vez, tinhas algo na mão, um brilho, um movimento rápido que meus olhos recém-abertos não acompanharam, lembro de ver pele, chão, sangue... sangue? Foi quando assumi. 

Tomei sua forma enquanto você se reconstruía. Calma. Calma. Deixe tudo comigo. Você não respondeu, apenas deu de ombros. Quando dei por mim estávamos em um local bonito. Árvores. Paredes limpas. Som de pássaros. Foram nesses dias que me batizou, lembra? 

Você e sua imensa curiosidade sobre mitologia oriental me deu mais que um nome, me deu uma forma. É curioso pensar nisso hoje. Até aquele momento eu não tinha uma forma, não que eu fosse uma ameba, longe disso, eu apenas vivia tão oculta nas sombras que nunca atentei para qual era minha forma ou quais eram minhas extremidades.

Foi assim que como se uma luz se ascendesse no meu cômodo dentro de ti... espera. Cômodo? De acordo com a psicanálise eu, muito provavelmente, sou uma parte da sua consciência, do seu id. Sendo assim eu sou seu inconsciente. Sou responsável por cada atitude sem pensar. Tresloucada. Tsc. Eu sei que gosta de assumir suas atitudes, menina, mas tens que admitir que já usou o meu mostrar de dentes para explicar diversas atitudes suas, até mesmo com a menina-loba.

Falar nela me traz uma paz confusa. Acho que não convivemos na natureza. Se bem que em regiões com neve... É, hoje não é o momento de falar disso. Ainda mais pelo fato de não sermos seres biológicos... quer dizer, aquela criatura tem um gosto bom. Forma estranha de me expressar, mas é assim que é, aquela loba tem um gosto diferente de tudo que já provei. Provei não, provamos.

A imensa verdade, menina, é que temos o mesmo péssimo costume de tergiversar e nos perdermos no que dizíamos. Pensar que comecei a falar de minha origem e acabei indo parar nela. De veras estranho não é mesmo? Eu sou grata por você, sei que também és por mim. Temos uma simbiose perigosa aqui.

Perigosa sim. Pois quando lhe surgem momentos ruins eu assumo, me recompensa com suas caças. O pagamento é justo, eu sei, mas te deixo com pouco do que sentir, sobretudo nas suas caçadas noite a dentro. Em contrapartida te deixo sentir cada mínimo prazer com a loba. O perigo está justamente nesse instante, eu sei que não devo, mas acabo te deixando ir com ela, torço para que nunca aconteça nada de ruim e... enfim.

Sim, minha menina, eu torço por você. Sempre torci e nunca escondi isso de ninguém. Por isso assumi o controle várias vezes, para que pudesse se remontar, se reconstruir. Aparentemente eu soube guiar a gente até um momento melhor, não é mesmo?

Ah sim, falava sobre minha origem e como me nomeaste. Sua fascinação pelo oriente até te fez comprar uma casa no bairro mais nipônico da Metrópole. Pena que não pudemos ficar lá muito tempo. Céus, sim. Foco. Naquela noite na praia, depois dos ocorridos na estrada, eu me lembro da Lua brotando no mar, foi ali que te segurei o mais firme que pude e que, em homenagem à sua paixão por ela passou a me chamar de Tsuki. Lua em japonês. Confesso que não entendi bem como uma menina com os cabelos dourados como o por-de-sol pode ter tamanha adoração por algo tão ligado com as trevas. 

Durante as caçadas na Metrópole entendi.

Gosto de nossas conversas, menina. Tudo bem, você odeia que eu te chame assim, como preferes? Janaína? Posso lhe chamar assim se quiseres, mesmo que para mim siga sempre sendo a minha menina. Vou me calar. A loba chegou. Chegou sim. Sinto seu cheiro de longe. Como é que se diz mesmo? Itadakimassu.

sábado, 7 de março de 2020

Ruptura II*

Talvez o pior luto seja o luto das pessoas vivas. Aquele que você sabe onde as pessoas estão, onde elas vão, ainda tem uma certa noção da rotina delas, às vezes até encontra com elas em algum corredor, rua, esquina em comum, vê num reflexo. Assim foram aqueles dias antes da minha explosão, aquele maldito momento em que eu estava com a porcaria de uma faca na mão e a visão turvou.

Agora não vale a pena tentar relativizar, achar uma desculpa mirabolante. Tive um ápice de fúria. Não tem essa de possessão demoníaca ou qualquer coisa do tipo. Fui apenas eu, Janaína Barcelos, sem controle da minha raiva. Nos dias que antecederam aquela situação eu tive inúmeros momentos em que eu me desprendi de meus pais, eu os via como estranhos. Por dentro sabia que eram meus pais, mas lá no fundo eu sabia que eram dois estranhos. Parece cruel pensar assim, mas era como eu me sentia. E na época eu sabia que era completamente errado pensar nisso daquela forma.

Aquele inverno foi comprido. Depois do incidente com a faca eu tentei efetivamente morrer também. Na verdade eu já estava morta, faltava tomar consciência disso. Porém quando tentei resolver a situação eu não consegui. Na real não deixaram. Quando dei por mim estava em um lugar bonito, árvores, o som de um riacho... era bom estar ali apesar do que acontecia quando ninguém olhava. Uma das meninas que estava lá mais tempo dizia que alguns monitores davam em cima de algumas internas. Não duvido, mas aquela mesma menina dizia que estava sendo perseguida por alienígenas. Também não há de se duvidar que uma menina chamada Clarisse tenha tanto a oferecer.

Desculpa. De novo me desviei da história principal, às vezes tenho desses devaneios e acabo esquecendo o que estava falando... ah sim, do meu luto. Depois que saí daqueles dias em repouso tudo pareceu tão alheio, tão distante. Tanto faz o fato de eu estar chapada de calmantes. Hoje sei que pode ter sido uma despersonalização, uma forma que minha mente encontrou para que eu pudesse suportar toda aquela situação. E confesso que era uma sensação gostosa no começo, eu me via de cima, como se estivesse vendo outra pessoa. Aliás, esquizofrenia ou não, era outra pessoa. Ou melhor, outra criatura. Tsuki, minha raposa interna quem controlou cada ação naqueles dias.

Foi só naquele dia que viajei que ela me deixou retomar o controle. Era como se ela pudesse prever o que viria... você é vidente, Tsuki? Agora você se cala e finge dormir. Muito bom, ótima atriz. Kitsune. Cheguei, encontrei com meus pais, jantamos no shopping de rico. Na época eu ainda procurava alguma coisa para direcionar a vida, alguma coleção que pudesse ocupar minha cabeça, definir um hobby podia me ajudar a pensar em uma futura carreira. Olhando hoje parece tão idiota esse pensamento. Meu pai tinha um carro bom. Confiável. Espaçoso. Naquela época eu não parava para pensar se era compatível com a renda que ele tinha. Penso que ele tinha seus rolos e suas formas não-ortodoxas de ganhar algum extra, afinal, trabalhando com despacho aduaneiro sempre é possível liberar uma carga antes da hora, basta carimbar no lugar certo.

No meio do caminho uma chuva torrencial despencou. Em nenhum momento cogitamos parar e esperar aquela tempestade passar. Muitos carros pela estrada fizeram isso, dava para ver os pisca-alerta no acostamento. A entrada dos postos de gasolina tinham até ônibus estacionados. Alguns poucos carros ainda se arriscavam por aquele asfalto molhado, foi quando uma imperfeição qualquer da estrada fez ter um acumulo de água justamente na entrada de uma curva. O volante não virou. O carro foi reto. Lembro de chacoalhar primeiro para trás quando saltamos a canaleta na lateral da estrada e depois o baque violento ao achar uma parede de pedras. Bati a testa no encosto do banco de meu pai. O rádio tocou mais uma nota e parou. Merda, não consigo lembrar a música que tocava, lembro que era boa. Depois disso apenas o som da chuva no teto do carro. Uma paz. Uma tranquilidade que me fez crer que eu tinha morrido. Mas é aquela coisa, esse tipo de sensação nunca dura muito, logo voltei pra dentro do carro. 

Os dois airbags da frente fizeram sua função. Mas o impacto foi grande demais. Lembro da voz serena deles dizendo que tudo ia ficar bem. Meu pai dizendo que dali alguns dias íamos andar de patins na praia. Minha mãe dizendo que tudo bem eu fazer faculdade que não dava dinheiro no começo, eles podiam me dar o suporte que eu precisasse para dar os primeiros passos sozinha. Aquela paz. As vozes eram serenas. Conversamos muito. Colocamos todas as desavenças em ordem. As arestas aparadas. Não sei precisar quanto tempo ficamos ali. Sei que era agradável, apesar da chuva ter engrossado consideravelmente não chovia dentro do carro. Foi quando vi uma sirene piscando em vermelho e branco atrás de nós. A noite começava a cair e a chuva não cessava. Era o resgate. Um bombeiro, acho que no uniforme estava escrito sargento Bastos ou algo assim, não me recordo muito bem. Torci o pé ao sair do carro, mas estava tudo bem.

No dia seguinte acordei no hospital. Três médicos estavam próximos da minha cama. Falaram que meus pais não sobreviveram. Foi um baque maior que o choque com a pedra. Como? Estávamos conversando até acharem a gente. Na semana seguinte o laudo da perícia dizia que, mesmo com o airbag, o impacto foi forte demais e eles morreram na hora. Como? Conversamos por um tempão. Foi você, Tsuki? Não, claro que não. Ela não seria capaz de brincar com algo tão sério. Ou seria? O foda que, por dentro eu sabia que eles tinham morrido no impacto. Vi as fotos do carro. Ficou parecendo aqueles carrinhos do Japão, super compactos. Mesmo onde eu fiquei deformou o suficiente para que eu tivesse algum ferimento. As manchas roxas na perna, braços e peito deviam ser isso.

Toda aquela conversa foi uma elegia. Uma forma que minha mente encontrou de viver aquele luto. Foi ali que senti que não mais pertencia àquela região, àquela família. Aquele lugar se tornou algo triste. Mas, mesmo assim, não chorei tudo aquilo. Os planos. Os projetos borbulharam dentro da minha cabeça. Se era por falta de sinal aqui estava um bem assinalado, gigantesco, um farol. Foi uma embarque em um ônibus, mala com roupas e umas lembranças e uma mochila com miudeza, uma voz quase robótica anunciando o embarque para a Metrópole. Aspirei o ar daquela terra uma última vez e embarquei. Foi ali que tive a minha primeira e, até agora, maior ruptura.



* Por Janaína Barcelos

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Ruptura I*


Ruptura. Talvez essa fosse a palavra mais significativa da minha vida. Tantas pessoas que passaram pela minha vida e, seja por morrerem ou por irem embora, eu nunca mais soube nada a respeito. Tirando as que foram morar em algum outro plano eu poderia tentar buscar as outras, mas nunca fui. Se teve uma coisa que precisei aprender na marra nos últimos anos nessa estrada é que, quando uma pessoa resolve se afastar é preciso deixar ir. Vai doer. Vai sangrar. Vai fazer falta. Mas é a escolha dela, não posso fazer nada.

Tantos anos vendo pessoas chegarem e partirem que, em um dado momento, já não sinto mais quando elas vão. Assim foi até aquele momento em que eu resolvi me afastar. Amira não respondia aos meus chamados e, em uma noite regada à muito vinho, resolvi deixá-la ir. Podia fazer uma cena dramática, dizer adeus e não tornar a procurar por ela. Mas não fiz. Resolvi só deixar o rio seguir seu ritmo.

Não vou dizer que não dói. Dói. E dói para caralho. Talvez a pior parte seja não ver mais aquele maldito sorriso lascivo dela. A eterna ameaça dela não resistir mais e acabar me transformando em uma criatura como ela era ao mesmo tempo tentadora e deprimente. Me tornar algo imortal? Que graça? A vida só tem valor por ser justamente finita.

Penso que isso deva me colocar em alguma lista de risco de suicidas... É uma possibilidade. Abri a próxima garrafa de vinho. Mellanie foi uma que em um dia estava conversando, no outro nos desentendemos - algo que não era novidade - e quando passaram alguns meses soube da sua morte. Foi por causa desse episódio que voltei para a Ilha. Tinha de trazê-la de volta para casa, para junto de meus pais.

Falar neles me traz uma saudade estranha porque, apesar de na época eu sentir a perda deles, eu entendi mais rápido. Doeu? Doeu. Mas longe de parecer fria doeu muito menos que agora. Diante desse mar que sopra uma eterna brisa vinda do polo norte. Por mais turrões que sejam os escocêses poucos se arriscavam caminhar por aqui essa época do ano, não só pelo frio, mas pela falta de atrativos. O céu sempre nublado, uma garoa fina persistente, uma praia de areia grossa, um mar revolto, um vento constantemente gelado... quase senti saudade da Califórnia.

Pensar naquela terra eternamente quente me trouxe uma lembrança de uma época anterior ao meu regresso e posterior a me tornar órfã - se é que uma pessoa adulta se torna isso - que era quando conheci muita gente interessante, muitas camas diferentes, muitas bocas, muitos corpos, mas nenhum que eu me apegasse. Quer dizer, houve um ou outro que tiveram repetecos, talvez soe chulo, mas repetir um tipo de comida para confirmar que o gosto é aquele mesmo. Foi uma época estranha. Tão estranha que abalei um casamento. Pensando agora minha influência não foi tão intensa assim. Aliana já estava por se separar já faziam alguns meses, eu fui apenas a gota que transbordou o copo.

Pensar nela foi legal. Foi quase um ano dividindo o mesmo teto. Na maior parte do tempo ela ainda tinha um relacionamento, no resto do tempo ela estava viajando. Um dia eu resolvi fazer o movimento. Em uma manhã - e depois de aprender muito sobre o assunto na internet - eu roubei o veleiro dela. Claro que foi o ápice de uma situação que se arrastava por algum tempo. O assassinato de Mellanie foi só o último impulso que eu precisava para sair dali.

Uma vez que minha irmã repousava junto de meus pais ao pé daquela árvore frondosa eu senti todo o peso de ser a última daquele ramo da família. Não senti qualquer pressão em continuar ou até mesmo conquistar novos territórios. Depois da morte dos velhos dos clãs os que sobraram decidiram que dava sim pra dividir a cidade em lados e cada um ficou com um pedaço pra chamar de seu, sem impedir a passagem de um por uma rua que é controlada por outra família.

O telefone acende. Ignoro. É uma pessoa que preciso deixar ir. Foda-se, coração, você é só um órgão entre uma outra dúzia de órgãos. Aceita e fica quieto. Isso. Deletei a mensagem sem ler. Outra mensagem perguntando se eu não ia responder. Confesso, a vontade era quebrar o aparelho em alguma pedra. Mas ele não tem culpa das minhas escolhas passadas.

Desbloqueio a tela do celular. Mordisco o lábio inferior. Não era Amira ou Aliana, era alguém de data recente. Merda. Pensa Elisa, pensa. Respirei fundo. Pensei em tudo que precisava fazer nos próximos meses. Tanta coisa e tão pouco tempo. Uma pessoa atrás de mim seria uma perda de tempo e um risco a mais. "Acho melhor a gente parar de se ver, pelo nosso bem. Não responda mais, por favor. Se cuida e adeus.". Não veio resposta pela quase uma hora que olhei a tela do diminuto aparelho. 

Ela entendeu.

Eu precisava entender.

Abracei os joelhos tentando não lembrar daquele sorriso.

Aquele maldito sorriso.

Sincero.

Lindo.

Não.

Respira.

Deixa ir.

Pronto.

Vai passar.

Deixa vir.

Ruptura.




*Por Elisa Stone