sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Aos 33

Então chegou a única postagem que, não importa o que acontecer, vai sair no dia e hora programada: a postagem encerrando o ano e fazendo meus desejos ao ano vindouro.

Caramba o que foi esse ano né? Quer dizer, ainda tá sendo. Mas vamos começar pelo começo: apesar de registrado e a venda (não na amazon, tio Bezos não me aceitou, seila porque caralhas) meu livro vendeu zero. Algumas pessoas receberam de graça mas só uma leu... Não sei vender minhas coisas. Bem dizem que casa de ferreiro espeto de pau.

Depois, umas duas semanas depois de entrar em vinte vinte (ou dois mil e vinte, vulgo esse ano) eu consegui um emprego! Finalmente um dinheirinho entrando fixo na minha conta todo mês e fazendo o que eu gosto. Tava tudo bem até vir essa pandemia, mas dela falo mais depois.

Com dinheirinhos fixos entrando eu resolvi ir atrás de: terapia. Não sei se eu é que dei sorte, mas de cara consegui uma terapeuta muito boa, que me deixou super seguro pra falar muita coisa que eu tava querendo dizer, abrir/mostrar coisas que eu precisava ver a reação de outro serumano sem ser via uma tela e foi...  Transcendental (ufa, esse ano não escrevi "mágico" haha), pessoas se vocês quiserem uma única dica minha é: façam terapia. Melhor investimento da vida de vocês.

Dentre as muitas coisas que aconteceram a mais incrível e inesperada foi a pandemia, é como diz o meme "cansei de viver um evento histórico". A merda é que o coronga acabou levando com ela meu emprego... Então eu arrumei um trampo e perdi um trampo nesse ano. Fiquei triste? Fiquei, triste? Pra caralho, mas é como disse minha prima: dessa vez eu fui até o fim, não desisti no meio. Vida que segue.

Consegui manter a oficina dos carrinhos com uns projetinhos novos, nada muito wooow mas refinei umas técnicas, fiz uns projetinhos legais. Mas, como tudo esse ano, fiz mais pra mim do que pra sair postando. O mesmo vale pros escritos: apesar de ter pouca postagem esse ano eu escrevi até bastante, mas não postei nada porque... Esse ano ta doido.

Depois disso tudo eu sinceramente não sei o que esperar do ano que inicia agora, mas espero que alguns planos saiam do papel e outras coisas (tipo escrever e a oficina) se mantenham ativas na medida da vontade (afinal é quase um hobby) e que consiga algumas coisas que eram pra ter sido continuadas esse ano mas né, coronga.

Vai parecer história de pescador, mas no dia que saí do trabalho eu fui nos molhes (o canal onde entram os navios pro porto) e esse navio tava entrando... Achei que nunca fosse ter um navio preferido na vida, mas agora tenho. Nunca fui de acreditar muito nisso, mas olha o nome do navio... Parece muito aquela coisa de filme que dali pra frente vai ser um ponto de virada.


"ever smile" ou "sempre sorria" numa tradução googlistica

A grande e imensa verdade é que já não tenho mais todo aquele ranço de fazer aniversário, porém não tenho lá muitos motivos para comemorar e, pra ser sincero, eu não ando sentindo nada nas coisas que faço, as coisas ruins são rápidas, as boas são prazeres tão efêmeros quanto um por-de-sol... espero, de coração, que essa nova volta ao redor do sol melhore isso de alguma forma.

Alea jacta est.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Gotas de Delírio

Trovões no céu, um corpo ensanguentado no chão e no ar o cheiro de pólvora completava o ambiente hostil. Nathália tentava se lembrar como tinha vindo parar ali. Tudo era um grande vazio na sua mente. Não era a primeira vez que usava uma droga que lhe alterava a percepção do ambiente ou até mesmo do tempo. Balançou a cabeça negativamente notando as duas tranças, uma de cada lado, que ornavam seu cabelo preto.

Lembrou da primeira regra pós uso de alguma droga nova: Pensar no que se lembrava. Enquanto tirou da bolsa o celular desligado procurava com a ponta dos dedos a bateria extra que sempre trazia consigo. Teria de esperar alguns minutos até poder religar o diminuto aparelho. Olhou em volta buscando alguma explicação. Fora o cadáver não tinha muita coisa.

Uma poltrona onde ela estava, alguns quadros desses de artistas de rua com paisagens genéricas, uma mesa próxima da janela com um abajur e uma cortina marrom clara com desenho de pinheiros. As paredes de madeira diziam que ou era uma casa velha ou era uma casa de rico, nunca vai ser o meio termo. Com certa dificuldade ficou em pé dando o primeiro passo.

Trajava uma saia preta com adornos dourados, uma blusa curta que lhe deixava tanto a barriga quanto os ombros a mostra, nos braços diversas pulseiras, nos pés uma sandália rasteirinha atada tanto no peito do pé quanto no tornozelo. Os dedos traziam seus vários anéis, cada qual com um significado próprio.

Tomando cuidado para não pisar no corpo foi na direção da porta, não sem antes dar uma boa olhada na figura falecida. Parecia um efeito especial de filme ruim. Se inclinou sutilmente na direção do corpo masculino tentando reconhecer a figura. Nada. Nenhuma lembrança. Mas o ventre perfurado por diversos buracos contava uma história. Talvez um tiro de espingarda ou vários tiros de outra arma. O sangue em estado que aparentava estar seco lhe deu o último ponto básico de que aquela história havia ocorrido já tinha algum tempo.

Por mais estranho que pudesse ser não se abalou tanto em deixar o morto ali sozinho, afinal, ele já estava morto. Que mal haveria de ter? No máximo quem fez o que fez viria para tentar apagar as provas. Girou a maçaneta pouco mais de quarenta e cinco graus.

O primeiro passo fora do cômodo foi estranho, não saberia dizer se era a luz, o cheiro ferroso pairando no ar, os sons agudos oscilantes misturados a um barulho de algo batendo. Tudo pareceu tão ruim que ponderou um instante em ir adiante ou ficar ali. Podia aguardar o algoz do companheiro de quarto e ver se o destino guardaria para si algo melhor que para ele.

Não. Deu o próximo passo e todos os sentidos foram sobrecarregados, muita luz, muitos cheiros, muitos sons... dois segundos de síncope e tudo voltou ao normal. Estava no mesmo quarto. Na mesma poltrona. Ao lado do mesmo corpo. Se questionava se não podia ser efeito da droga que tinha tomado. De uma coisa tinha certeza: Fosse o que fosse logo o efeito cessaria e tudo voltaria a ser como era.

Tinha duas opções bem claras agora: Seguir se movendo durante a viagem e, no mundo real, acabar atropelada por um ônibus ou ficar onde estava correndo o risco acabar morta como a figura ali do lado.

Ônibus. Morta. De repente essas duas palavras acenderam na sua mente como dois pequenos pulsos. Perfeito. O efeito estava passando e já podia reencontrar a realidade. Esfregou as mãos no rosto. Uma vez tinha ouvido falar que tocar em si mesma durante o uso de alguns tipos de droga fazia uma ponte mais sólida com a realidade.

Conforme piscava tinha a impressão de que a cortina mudava de cor. A poltrona mudava de cor. A única coisa que seguia igual era o sangue no chão. Então ele era a única coisa real ali. Pelo menos era isso que Nathália imaginava. Resolveu tentar sair do cômodo novamente.

Passo. Pulou o cadáver. Passo. Girou a maçaneta. Passo. Luz branca. Passo. Sons altos. Passo. Cheiro ferroso. Passo. Síncope. Sentiu uma forte pressão no peito. Passo. Fechou as pálpebras. Passo para trás. Abriu os olhos.

Não estava mais na poltrona. Pronto. Acabou. Outra perspectiva. Não conseguia mover o corpo. Só os olhos. Tentou distinguir o que estava vendo. Pés. Uma parede... a lateral da poltrona. Quando tentou afastar os lábios o movimento de uma figura humana chamou sua atenção. O som da porta se abrindo juntamente dos passos lhe trouxe uma realidade incômoda: estava no chão. Será que...?

Com esforço moveu a cabeça o suficiente para ver que era ela o cadáver no chão. Mas não estava morta. Estava? Não conseguia conectar os eventos entre si. A sombra que passou sumiu porta afora. O silêncio perdurou durante dois segundos exatos, em todos os seus décimos, centésimos e milésimos. Uma grande pressão como se o teto desabasse em cima de Nathália a fez fechar os olhos de súbito. Quando abriu estava no mesmo lugar no chão.

Abriu os olhos. Passo. Poltrona. Passo. Ruídos baixos. Passo. Sem memória. Passo. Porta abrindo. Passo. Silêncio completo. Passo. Teto desabando. Acordou na poltrona. "Mas que porra é essa?", tentou se mover. O corpo estava inteiro. Checou tudo em volta antes de se levantar. O cadáver estava ali. Seu inconsciente dizia para ir na direção da porta. "Não!" pensou em voz alta. 

Com o cuidado de quem já tinha visto filmes de terror suficiente se aproximou do corpo supostamente morto, se abaixou tentando esquadrinhar um detalhe, algo que pudesse servir de pista para dizer onde estava. O cadáver estava de ventre rasgado e olhos abertos. Desceu mais seu rosto na direção do dele quando os olhos se moveram na direção dela.

O susto inicial logo deu espaço para a lógica: ele não estava morto. Mesmo tendo perdido tanto sangue. Não via uma solução plausível. Tentava pensar. Nenhuma resposta vinha à sua mente. Os lábios dele se afastaram.

- Vo-você quer alguma c-coisa? - Sua voz estava diferente do que se lembrava - O-onde estamos?

- Ônibus.

- Que? - Nathália se aproximou - Você sabe onde estamos?

- Ônibus.

Tentou lembrar de todos os filmes em que o fantasma falava uma única palavra e todas as vezes era algo relacionado à sua forma de morte. Então ele foi atropelado por um ônibus e largado ali? Mas estava em uma casa de madeira. Olhou em volta... tudo convergiu pro branco.

- Nath?

- Quem...?

- Nathália, não brinca comigo - Conhecia a voz, a silhueta mas não conseguia... o morto, se afastou de súbito - Que foi véi?

- Que... - Aos poucos todas as suas memórias voltavam e os pontos iam se aglutinando como partículas formando planetas ao redor de um disco de poeira estelar - Onde eu tô?

- Em um ônibus - A visão foi reconhecendo o ambiente e tomando forma, o cheiro ferroso vinha das péssimas condições da manutenção feita no transporte coletivo que atendia aos bairros mais afastados da Metrópole - Indo lá pra casa... cê ta bem?

- Não... quer dizer... sim... quer dizer... não sei.

- Eu disse pra você não tomar aquilo.

- Aquilo...?

- É, na rua andam chamando de gotas de delírio, coloca na bebida e você vai ter a viagem mais insana da sua vida.

- Mas... eu tomei isso fazem horas... ou não?

- Sim - Ele se ajeitou no banco, só agora Nathália se deu conta de que estavam na última fileira de bancos de um ônibus onde duas pessoas estavam sentadas próxima do cobrador e uma mãe e criança estavam na porta prontas para descer - Não fez muito sucesso na rua por fazer efeito muito tarde, isso quando faz.

- Quanto tempo eu...?

- Ficou chapada? - Ele sorriu de canto - A gente entrou no ônibus, sentou, você piscou, achei que ia dormir, paramos em um ponto, umas seis pessoas desceram falando de uns papos de morte e tals, mó sinistro... aí você acordou.

Como se fosse um vídeo acelerado toda a noite veio em sua mente. Saiu de casa, encontrou com seu namorado, Pablo, foram em uma casa noturna, bebeu um drink que tinha uma fatia de abacaxi. Colocou duas gotas da droga que queria saber se o efeito aparecia com música, pois nas repetidas vezes que tentou em casa nada acontecia, pensou que o ambiente barulhento pudesse lhe trazer novas sensações. Se frustrou quando nada aconteceu, como estava a meio caminho de casa e a meio caminho da casa de Pablo resolveu passar a noite com ele. Como naquela região carros de aplicativo raramente aceitavam corridas foram de ônibus. Diversas pessoas saindo de um culto, ternos, mulheres em vestidos de altura média, sem decotes e bíblia na mão. Em uma freada brusca o efeito esperado chegou.