sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Vizinhança

Na mão esquerda a cuia de chimarrão, na direita a garrafa térmica. A velha cadeira lhe fazia doer as costas, mas tudo que ele pensava era como havia chego até aqui, como estava diante de tantas possibilidades e, ainda assim, distante de alcança-las. Enquanto pensava sorvia um gole curto da bebida pela bomba. Jogou a sobrancelha esquerda para cima pensando em como havia aprendido a fazer um bom chimarrão. Uma rápida olhada para baixo e não havia o menor sinal de erosão, tinha colocado a água quente no instante exato e isso criou uma parede que solidificou criando uma espécie de fiorde dentro da pequena cuia marrom escuro com o desenho que vagamente lembrava um cavalo entalhado.

Ao segundo roncar da bomba abriu a tampa da térmica completando o próximo chimarrão. Bebia sozinho. Gostava de ficar sozinho enquanto bebia. Às vezes dizia que a erva lhe fazia pensar melhor, talvez fosse verdade, talvez não. Segurou a bomba entre os lábios sem beber apenas sentindo o vapor bater em suas narinas. Leu em algum lugar muito tempo atrás que vapor d'água ajudava a desentupir o nariz. A rinite, eterna companheira de jornada, havia lhe dado a trégua no decorrer do dia. Então o vapor ajudava a desfocar a vista como se estivesse prestes a tomar a decisão mais importante da sua vida.

Apesar da música ligada alta ligada em loop podia ouvir sons da rua, carros, pessoas falando mais alto. Todos foram encobertos pela chuva que caiu pesada. Pensou em ir assistir a precipitação na varanda, mas não foi. Cada gole da bebida lhe aquecia de forma diferente. Tinha a certeza de que mais tarde esse consumo exagerado lhe trazia a azia, mas, não se importou com isso, ela vinha por qualquer motivo mesmo, era um subproduto do refluxo que diziam que tinha. Era uma boa hipótese. Ponderou se cuidar para não ter mais refluxo, mas ao ver a lista de alimentos "proibidos" desistiu. Entre a possibilidade de, talvez não ter nada e deixar de comer algo que gostava, preferia sempre a segunda.

Por duas piscadas pensou nela. O suspiro veio como um peso. O suspiro veio como um alívio. Tinha esse misto de sentimentos quando seu pensando era naquela mulher. O olhar percorreu sua mesa que não via uma arrumação faziam alguns dias. O terceiro piscar pensou em jogar tudo fora. Tudo. Sem exceção. A quarta veio misturada ao vapor e um gole mais curto. Era só arrumar e limpar. Lucidez. Assim como gostava de dizer que a erva, por vezes, lhe tirava de si, gostava de como ela podia lhe trazer calma e uma certa tranquilidade para tomar alguma decisão.

A tela escura do pequeno aparelho sobre a mesa acendeu. Pensou na pianista e em seus planos. Se tudo desse certo se veriam novamente depois de muito tempo. Claro que a viagem para a Metrópole não tinha o martelo batido, haviam muitos poréns e o seu departamento interno de "veja bem" lhe trazia prudência em qualquer decisão. Deixou a cuia sozinha um instante admirando o caminho do vapor até se dissipar no ar. Caiu a primeira lâmina de erva daquela parede dentro da água quente. Agora era questão de tempo até todo o chimarrão se transformar em uma espécie de sopa de erva mate bebida de canudinho. Ponderou refazer tudo. Não. Deixa como está.

Segurou a bomba entre os dentes sentindo o vapor lhe aquecer as maçãs do rosto. Aquela senhora tinha passado como um raio por sua existência e marcado. Soltou um largo suspiro sentindo a parte amarga do chimarrão na boca. Pensou como era curioso um gosto se fixar tão bem em apenas uma região da boca. Os dentes do fundo guardaram o gosto completamente amargo que fez ele pensar que a erva poderia estar estragada. Não estava. Era o excesso da bebida. As costas lhe diziam para dar um tempo daquela cadeira. Mas, ao mesmo tempo, ele queria continuar só mais um pouco, sentia que o mundo podia mudar a qualquer instante e ele queria estar diante dele e, se mudasse completamente, ele estaria sentado ante a mudança.

Sorriu balançando a cabeça negativamente. Alguém tinha de pesquisar se erva mate tinha poderes alucinógenos. Talvez tivesse, afinal ninguém era chamado de erva se não tivesse algum poder de desconexão com a realidade. Correu o olhar pela parede amarelada pelo tempo, as poucas lembranças do mural lhe traziam sentimentos distintos. Bebeu uma cuia inteira sem pensar em absolutamente nada. Quando ouviu o ronco da cuia parou. Ou será que quem roncava era a cuia? Enquanto abria o bico da garrafa térmica pensava em quem roncava. Ao longe a chuva dava sinais que pararia por algum tempo. A noite já havia cobrido a cidade de breu. Breu que era rompido pelas luzes dos postes, carros, casas, aviões que teimavam em tornar o escuro claro. Era como se a humanidade inteira tivesse medo de escuro. 

Ele também tinha uma luz, um velho abajur que a cúpula era apenas um papel de carta com o desenho de uma moça muito magra em uma bicicleta com um cachorro numa cesta. Nos cabelos havia um lenço comprido que combinava com a parte de cima do que deveria ser um biquíni. Na parte de baixo do tronco uma bermuda curta em um tom claro de marrom. Bem mais claro que a cuia. Uma palmeira do lado direito vergada para a esquerda enquanto o lenço estava rumando para a direita dizia que quem fez o desenho não se preocupou para que lado estava o vento. Ao longe uma roda-gigante fez ele pensar que o desenho se tratava do famoso pier de Santa Mônica, na Califórnia, fim da famosa Rota 66. Completando as discrepâncias do desenho a moça usava uma sandália de salto alto atada pelos tornozelos, não fazia sentido. Mas, ainda assim, era um belo desenho e ele gostava de tê-lo na mesa. Mesmo que agora o desenho, analisado, lhe passasse alguma estranheza ao olhar. Os lábios vermelhos da moça lhe faziam pensar. 

Estava a muito tempo apenas bebendo seu chimarrão e pensando em muitas coisas e em nenhuma. Tudo ao mesmo tempo. O pé, como se criasse vida própria, seguia o ritmo da bateria da música que estava a tanto tempo em loop que ele já não sabia mais como seria quando tirasse os fones. Sabia que esse momento chegaria. Suspirou enchendo mais uma cuia. A água não estava mais tão quente como já esteve. Com a ponta do indicador forçou a erosão a acelerar seu passo. As costas lhe diziam para sair daquela posição. A água na térmica acabando lhe dizia para sair dali. A bexiga dando sinais claros de estar cheia lhe dizia para sair dali. Aquela inércia. Aquela distimia. Aquela junção de coisas que ele não conseguia nominar lhe diziam para ficar mais um pouco. Decidiu. A próxima cuia duraria o tempo exato da última execução da música. Feito. Colocou o clipe em tela cheia. Usando toda a resolução que seu monitor permitia. Apagou o abajur convertido em luminária. Encheu a cuia. Suspirou. Clicou no repetir. A chuva voltou a cair com intensidade. O céu é a nossa vinhança.