segunda-feira, 29 de junho de 2020

Plata

Eu não acredito que perdi o controle de novo. Merda. E o foda que estávamos tão bem e de repente tudo desmoronou tão rápido que não consegui evitar aquele final. E não era a primeira vez. Bem feito, Camila, quem manda se apaixonar. Não pode só chegar em um lugar e ficar de boas, não, tem logo que arrumar namoricos que colocam tudo a perder.

Mas também agora não importa mais. Era incrível como a única coisa que aquele inútil do meu padrasto me deixou podia ser tão linda. Esse Opala ano 1974 rodava macio na estrada, o ronco baixo parecia um ronronar, velocímetro travado próximo dos cem quilômetros por hora fazia a paisagem passar rápido pela janela lateral. Seta, faixa da esquerda, acelera. O ronco encheu a cabine junto com o cheiro de álcool que alimentava as seis bocas do motor. Mais um ônibus ficou para trás.

Dessa vez vou mais longe, me impor uma barreira diferente: o idioma. Chequei o mapa no posto de combustível. Só mais seiscentos quilômetros. Em uma conta básica seis horas. Na realidade um pouco mais, talvez um dia inteiro, só eu, o Opala e a estrada. 

Buenos Aires parecia um bom lugar para se recomeçar. De novo. Verdade seja dita, eu nunca quis que isso tomasse a proporção que tomou. Quando eu dava por mim já estava obcecada. Fúria total. Hotel barato de beira de estrada aqui em nada lembra os que eu via nos filmes. Alguns tinham um restaurante outros eram ao lado do posto. 

Com os primeiros raios de sol rompendo a espeça camada de nuvens peguei a estrada. Cada quilômetro rodado era a esperança de que tudo pudesse começar e eu pudesse ficar em paz. Fronteira. Documentos meus. Do veículo. Tudo em ordem. A cidade parecia envolta em uma aura noir quando estacionei em frente do hostel que seria meu lar por alguns dias. Garagem segura. Logo na manhã seguinte consegui um emprego legal em um café. "Brasileña? Tenemos muchos turistas acá y creó que podría ayudar con ellos". Claro. Pareceu ótimo.

Não que eu não gostasse do emprego. Mas como fazia questão de não querer conhecer ninguém passava a maior parte do meu tempo livre no café, era um local silencioso, a quantidade de chás que eles tinham supria minha curiosidade fora que era próximo o suficiente do pequeno apartamento e de uma das maiores livrarias do mundo. Foi em um passeio por lá que encontrei um livro que tinha ouvido falar no ensino médio. Em português. Quais as probabilidades dum livro em português estar em uma livraria de Buenos Aires? Muitas se considerar que eu gostava de fuçar a área do sebo.

Oito meses e já me sentia completamente adaptada à cidade. Mesmo o clima que muita gente reclama já não me causava incômodo.  Estava nas últimas páginas do livro que tinha comprado quando ela apareceu. Em um castelhano horrível perguntou se eu era brasileira. Respondi que sim, em espanhol. Rimos. Ela perguntou se podia sentar. Pediu um chá. Conversamos sobre o livro. 

Letícia. Fazia faculdade de cinema. Cabelos lisos, pretos. Olhos levemente puxados. Sempre com um short jeans curto que deixava as duas tatuagens na panturrilha expostas. Um cacto e um cacto em flor. Uma camisa xadrez por cima do top escuro completava o visual. Eu não controlava mais nada. Quando notei já estávamos morando juntas. Dividindo a cama e todos aqueles amigos com direito de abraçar. Ficar próximo. Rir sem eu estar por perto. Merda. De novo não. 

A vantagem de não ser a primeira vez é que você já sabe como tirar o sangue das mãos e se livrar de tudo. Melhor ir dormir. Amanhã tinha mil e cem quilômetros pela frente.

Chile. Santiago.