sábado, 29 de fevereiro de 2020

Ruptura I*


Ruptura. Talvez essa fosse a palavra mais significativa da minha vida. Tantas pessoas que passaram pela minha vida e, seja por morrerem ou por irem embora, eu nunca mais soube nada a respeito. Tirando as que foram morar em algum outro plano eu poderia tentar buscar as outras, mas nunca fui. Se teve uma coisa que precisei aprender na marra nos últimos anos nessa estrada é que, quando uma pessoa resolve se afastar é preciso deixar ir. Vai doer. Vai sangrar. Vai fazer falta. Mas é a escolha dela, não posso fazer nada.

Tantos anos vendo pessoas chegarem e partirem que, em um dado momento, já não sinto mais quando elas vão. Assim foi até aquele momento em que eu resolvi me afastar. Amira não respondia aos meus chamados e, em uma noite regada à muito vinho, resolvi deixá-la ir. Podia fazer uma cena dramática, dizer adeus e não tornar a procurar por ela. Mas não fiz. Resolvi só deixar o rio seguir seu ritmo.

Não vou dizer que não dói. Dói. E dói para caralho. Talvez a pior parte seja não ver mais aquele maldito sorriso lascivo dela. A eterna ameaça dela não resistir mais e acabar me transformando em uma criatura como ela era ao mesmo tempo tentadora e deprimente. Me tornar algo imortal? Que graça? A vida só tem valor por ser justamente finita.

Penso que isso deva me colocar em alguma lista de risco de suicidas... É uma possibilidade. Abri a próxima garrafa de vinho. Mellanie foi uma que em um dia estava conversando, no outro nos desentendemos - algo que não era novidade - e quando passaram alguns meses soube da sua morte. Foi por causa desse episódio que voltei para a Ilha. Tinha de trazê-la de volta para casa, para junto de meus pais.

Falar neles me traz uma saudade estranha porque, apesar de na época eu sentir a perda deles, eu entendi mais rápido. Doeu? Doeu. Mas longe de parecer fria doeu muito menos que agora. Diante desse mar que sopra uma eterna brisa vinda do polo norte. Por mais turrões que sejam os escocêses poucos se arriscavam caminhar por aqui essa época do ano, não só pelo frio, mas pela falta de atrativos. O céu sempre nublado, uma garoa fina persistente, uma praia de areia grossa, um mar revolto, um vento constantemente gelado... quase senti saudade da Califórnia.

Pensar naquela terra eternamente quente me trouxe uma lembrança de uma época anterior ao meu regresso e posterior a me tornar órfã - se é que uma pessoa adulta se torna isso - que era quando conheci muita gente interessante, muitas camas diferentes, muitas bocas, muitos corpos, mas nenhum que eu me apegasse. Quer dizer, houve um ou outro que tiveram repetecos, talvez soe chulo, mas repetir um tipo de comida para confirmar que o gosto é aquele mesmo. Foi uma época estranha. Tão estranha que abalei um casamento. Pensando agora minha influência não foi tão intensa assim. Aliana já estava por se separar já faziam alguns meses, eu fui apenas a gota que transbordou o copo.

Pensar nela foi legal. Foi quase um ano dividindo o mesmo teto. Na maior parte do tempo ela ainda tinha um relacionamento, no resto do tempo ela estava viajando. Um dia eu resolvi fazer o movimento. Em uma manhã - e depois de aprender muito sobre o assunto na internet - eu roubei o veleiro dela. Claro que foi o ápice de uma situação que se arrastava por algum tempo. O assassinato de Mellanie foi só o último impulso que eu precisava para sair dali.

Uma vez que minha irmã repousava junto de meus pais ao pé daquela árvore frondosa eu senti todo o peso de ser a última daquele ramo da família. Não senti qualquer pressão em continuar ou até mesmo conquistar novos territórios. Depois da morte dos velhos dos clãs os que sobraram decidiram que dava sim pra dividir a cidade em lados e cada um ficou com um pedaço pra chamar de seu, sem impedir a passagem de um por uma rua que é controlada por outra família.

O telefone acende. Ignoro. É uma pessoa que preciso deixar ir. Foda-se, coração, você é só um órgão entre uma outra dúzia de órgãos. Aceita e fica quieto. Isso. Deletei a mensagem sem ler. Outra mensagem perguntando se eu não ia responder. Confesso, a vontade era quebrar o aparelho em alguma pedra. Mas ele não tem culpa das minhas escolhas passadas.

Desbloqueio a tela do celular. Mordisco o lábio inferior. Não era Amira ou Aliana, era alguém de data recente. Merda. Pensa Elisa, pensa. Respirei fundo. Pensei em tudo que precisava fazer nos próximos meses. Tanta coisa e tão pouco tempo. Uma pessoa atrás de mim seria uma perda de tempo e um risco a mais. "Acho melhor a gente parar de se ver, pelo nosso bem. Não responda mais, por favor. Se cuida e adeus.". Não veio resposta pela quase uma hora que olhei a tela do diminuto aparelho. 

Ela entendeu.

Eu precisava entender.

Abracei os joelhos tentando não lembrar daquele sorriso.

Aquele maldito sorriso.

Sincero.

Lindo.

Não.

Respira.

Deixa ir.

Pronto.

Vai passar.

Deixa vir.

Ruptura.




*Por Elisa Stone