quarta-feira, 22 de abril de 2020

Álibi s3e1: Arquivo

- Alice, vai dormir - A voz vinha de Sueli, sua mãe, parada no batente da porta - Já vai raiar o dia e você ainda está nesse computador.

- Já vou, mãe... só estou vendo uma coisa aqui...

- Você disse isso meia noite, são seis e meia da manhã.

- Já? - Alice olhou pela janela e o céu amarelava-se ante aos primeiros raios da manhã que surgia no horizonte - Vou dormir um pouco...

- E o emprego?

- Eu só entro a tarde, negociei e agora entro depois do almoço e fico até de noite.

- Entendi - Sueli foi se afastando cobrindo um bocejo com a mão - Não gosto de você sozinha na rua a noite, ainda mais com aquele troço barulhento.

- Troço barulhento? - A jovem salvou o que digitava ferozmente até alguns minutos atrás - Fala da minha moto?

- É, aquela merda que o inútil do seu pai deu, como se isso fosse compensar os anos que aquele desgraçado ficou longe.

Alice nem se deu ao trabalho de responder. Na sua cabeça a relação da sua mãe com seu pai biológico era assunto de gente grande e que os dois, mais cedo ou mais tarde, precisariam sentar para resolver. Por isso ela nem ligou. Girando na cadeira que estava sentada deu um pequeno salto para, em seguida, cair na cama que não era arrumada faziam algumas semanas.

Piscou demoradamente e logo o despertador a tirou de uma tentativa de sonho. Tinha de resolver de uma vez por todas essa história, já tinham vários anos e nunca terminava, assim que saíssem as férias colocaria um fim em tudo isso. O problema é que já tinha se feito essa mesma promessa meses atrás, quando estava para entrar no período de folga das festas de final de ano.

Enquanto tomava um banho gelado relembrava ponto a ponto, tudo que já tinha conseguido, fosse por seu poder investigativo ou fosse pela sua lábia em conseguir acessos restritos aos arquivos da polícia. Verdade seja dita: Nunca acreditou na história dos jornais, quis ir um pouco além e ver o que tinha por trás da notícia e caiu em buraco negro infinito. Quanto mais cavocava mais longe do fim chegava. Por alguns instantes cogitou encerrar por ali, procurar alguma editora, publicar em formato de livro e, quem sabe, ganhar uns trocados a mais, porque se fosse depender do seu salário de jornalista morreria de fome. Se bem que para toda essa investigação gastava uma porcentagem significativa do seu ordenado mensal.

Almoçou respondendo reativamente para sua mãe que, ora lhe dava bronca por virar a madrugada, ora lhe falava das novelas, ora tantas outras coisas que a cabeça de Alice não estava ali. Por mais que ela considere aquela história a mais importante que já escreveu ela não deixava de trabalhar e pensar em tudo que a redação lhe cobraria naquele dia, talvez uma matéria sobre o trânsito (odiava o assunto), talvez algo sobre alguma chacina ainda mais agora que casos de corrupção andavam fora de moda...

Vestiu a pesada roupa de couro por cima da camiseta amarrotada e calça jeans com rasgo nas coxas e tênis baixo já colocando o capacete e subindo em sua motocicleta. O trânsito seguia lento para os carros, para ela não tinha diferença, passava voando e não se importava. Tão logo chegou na redação vieram lhe trazer um envelope pardo, sem remetente e cheio de papéis. "Uma matéria nova?" pensou enquanto Bruno, seu colega lhe chamava para a reunião de pauta. Mentalmente praguejou não poder ver o que era.

Nunca uma reunião de pauta durava menos de meia hora e nem passava de quarenta minutos, era o tempo exato para que o jornalista-chefe passasse todo o conteúdo para todos - umas oito pessoas - irem para a rua, pesquisar, correr e voltar com tudo pronto para revisão dele antes das oito horas da noite. No sorteio Alice acabou tendo que ir cobrir a repercussão de um campeonato de basquete do bairro vizinho, entrevistas os vencedores, os perdedores... tanto estagiário na redação e ela tinha que ir para umas coisas assim. Mas tudo é aprendizado, sempre ouviu isso de sua mãe e por conta disso não reclamava.

Entrevistando o capitão de cada time ela pensava na sua história principal. A que poderia mudar sua vida e que estava em standby por causa de algo tão banal quanto um emprego formal. E como o tempo é relativo tudo passou devagar, anotava as palavras, mentalmente formava o texto da matéria enquanto Bruno fotografava os jogadores diante do troféu. Parabenizou pelo campeonato, pela organização e pronto. Ao voltar para a redação fez tudo em um modo tão automático que não viu o tempo passar e nem mesmo lembrou do envelope em sua mesa.

Conteúdo revisado, enviado, revisado de novo, revisado mais uma vez e finalmente aprovado. Encaminhou para a diagramação que colocaria a matéria ainda hoje pois o dono do jornal era um dos patrocinadores do campeonato - Fato que Alice só soube depois e lhe deixou suavemente irritada - e por hoje era só. 

Passou pela sua mesa pegando a jaqueta de couro que repousava desde mais cedo na cadeira e o envelope lhe sorriu. Tomou-o entre os braços e seguiu para o estacionamento colocando no baú da motocicleta e rumando para casa. Eram dez horas e quarenta e seis minutos quando chegou. Sueli dormia no sofá com a televisão ligada. Alice a acordou e a colocou na cama. Não pretendia passar a madrugada acordada hoje, queria colocar o sono em dia.

Foi quando se lembrou do envelope. Sem remetente, sem nenhuma identificação, apenas seu nome. Com cuidado abriu e tirou o calhamaço de papel de dentro. Nada aparentemente tóxico, apenas um pendrive se fixou no fundo do receptáculo o que obrigou Alice a chacoalhar para que ele caísse. O conteúdo digital veria depois, puxou os papéis para perto, no topo um envelope pequeno e uma folha de caderno. Seu bichinho da curiosidade a atiçou.

"Olá, Alice.

Soube do seu interesse nesse caso e reuni algumas coisas que espero que te sejam úteis, ninguém aqui na DP tem interesse nesse caso e por isso resolvi que era melhor deixar que uma criatura esperta como você tomasse as rédeas disso e tornasse pública esta história, creio que trará paz não só as vítimas como também elucidará o caso fazendo o delegado que sempre considerou o caso encerrado seja processado por acobertamento.

No pendrive irá encontrar arquivos originais da época, fotos, dados periciais, alguns documentos e um começo de investigação que fiz e acabei em um beco sem saída. Espero que consiga encontrar aqui tudo que não consegui.

Atenciosamente,
F."

Pronto. Era tudo que ela queria para passar mais uma noite em claro. Uma parte dos papéis eram laudos e arquivos originais da polícia daquela história que tanto atormentava Alice. Fotos, detalhes que ela nem cogitou existirem, depoimentos, vídeos de câmeras de segurança, históricos, tudo ali, diante de seus olhos.

Fez uma térmica de café. Essa noite seria extremamente longa.