quarta-feira, 25 de março de 2020

Tudo

- Seu olfato lhe enganou, raposa, não era Helena.

- Mas era alguém com cheiro parecido.

- Parecido não é ela.

- Eu ainda sinto - Podia quase ver Tsuki com o focinho levantado tentando aspirar mais o cheiro que ela dizia sentir no ar - Tem certeza?

- Claro que tenho!

- Falando sozinha de novo? - Helena veio da sala parando do meu lado - Ta ligada que pode ser sinal de esquizofrenia né?

- Vocês duas vão me enlouquecer um dia.

- Duas? - Ela olhou para os lados - Espera, vamos voltar e começar do começo... com quem estava falando?

- Você não entenderia.

- Tenta.

- Hoje não.

- Janaína Barcelos - Ela tomou a mão na minha - Negação é tão ruim quanto esquizofrenia.

- E desde quando você é psicóloga?

- Nossa - Helena soltou minha mão voltando para dentro de casa - Desculpa então.

- Pronto, Tsuki, satisfeita?

- Com o que? Você ser escrota com a única pessoa que te entende? - A vi se virando de costas para mim, se enrolando, dando um largo suspiro e dormindo. - Não coloca essa na minha conta não, Janaína.

Pronto. Agora a merda toda estada feita e eu ainda tinha um graveto pra mexer nela e fazer feder e espalhar ainda mais. Parabéns, Janaína. Dez horas de parabéns pra você. Trinquei os dentes pronta a explodir quando o celular no bolso vibrou. Um novo e-mail. E-mail. Quem ainda usa isso? Era uma resposta a um e-mail que enviei quase um ano atrás. 

"Prezada Janaína, tudo bom?

Meu nome é Roberto e eu sou locutor na rádio Princesa, seu pedido deu um certo trabalho de conseguir encontrar. No entanto eu me lembro da chuva daquele dia, por isso eu tinha uma vaga ideia do que toquei naquele dia. Depois de muito procurar acabei encontrando em um CD o backup da playlist daquele ano inteira, coisa que eu nem sabia que a rádio guardava. Enfim... no horário aproximado tocou essas três, espero que seja uma delas a da sua lembrança:

Titãs - Os Cegos do Castelo
Goo Goo Dolls - Iris
Rammstein - Ohne Dich

Espero que te ajudar. Precisando de mais informações estou por aqui, agora sei onde procurar haha

Atenciosamente, Roberto Silva."

Confesso que, de todos os e-mails que eu esperava hoje, esse era o último da lista. Talvez ele nem mesmo estivesse ranqueado. Uma dessas duas músicas estava tocando quando batemos. Eu lembro vagamente. Curioso como a memória trai a gente. Quando mais nova tinha feito aula de violão, desenvolvi um ouvido muito bom pra música mas não lembrava daquela música.

Entrei em casa. Porta do quarto fechada. Luz por baixo da porta. Helena cantarolava alguma coisa. Peguei os fones e fui para os fundos da casa. A cidade estava em um silêncio quase surreal. Quase apocalíptico. A única coisa que se ouvia eram algumas motos de entrega passando ora pra um lado ora pro outro. Me sentei na grama, o escuro da noite deixava o céu apenas para a estrelas.

Dei o play na primeira. Não era bem essa. Na segunda Uma orelha se levantou baixando em seguida. Quando o primeiro acorde da terceira música veio Tsuki acordou. O movimento rápido dela foi como de uma raposa real que caça para comer e acabou de ver uma lebre indefesa sair de sua toca.

- Essa música, menina - A voz oscilava entre o grave e o normal - Era essa música.

- Eu sei.

- Ela é bonita... pode repetir, por favor?

- Claro.

Perdi as contas de quantas vezes ouvi a mesma música. A conta perdida também era a de quantas lágrimas fugiram dos meus olhos. A noção do tempo também foi embora junto com todo aquele sentimento preso. Tinha de levar isso para a terapia.

- Sinto cheiro de...

- ... Helena.

- Como me ouviu chegar?

- Seu cheiro.

- Cheiro? - Ela riu enquanto eu, deitada no chão a via de cabeça para baixo - Tudo bem que eu estou suada, mas não é pra tanto... - Helena se cheirou - ... tá, tem um cheirinho, mas nada que possa ser tão absurdo e rastreável.

- Tsuki me falou do cheiro.

- Tsuki... - Ela se sentou ao meu lado - A raposa?

- A própria.

- Menina - Tsuki me cutucou - Confia nela, por favor.

- Tem certeza?

- Tenho.

- De novo falando com ela? - O olhar era mais curioso que julgador - O que ela acha de mim?

- Ela gosta de você.

- E o que mais?

- Tsuki pediu pra agradecer por cuidar de mim.

- Eu que agradeço por cuidar da gente, raposa.

- Hell - Tirei os fones - Preciso te contar uma coisa... uma história...

Hora do salto de fé. Respirei fundo tentando organizar todas as palavras antes de falar, quase como fiz na terapia, só que o divã era um gramado úmido, o teto era o céu e a terapeuta Helena Vincent. Falei tudo.

sábado, 14 de março de 2020

Ganido

Não há um momento exato em que surgi, talvez sempre estive aqui dentro adormecida, apenas esperando a hora certa para despertar e cuidar de você, menina. Eu sei que não gostas que te chamem assim, mas é como lhe vejo.

Posso não ter a memória exata de quando cheguei, mas lembro-me de quando tomei o controle a primeira vez, tinhas algo na mão, um brilho, um movimento rápido que meus olhos recém-abertos não acompanharam, lembro de ver pele, chão, sangue... sangue? Foi quando assumi. 

Tomei sua forma enquanto você se reconstruía. Calma. Calma. Deixe tudo comigo. Você não respondeu, apenas deu de ombros. Quando dei por mim estávamos em um local bonito. Árvores. Paredes limpas. Som de pássaros. Foram nesses dias que me batizou, lembra? 

Você e sua imensa curiosidade sobre mitologia oriental me deu mais que um nome, me deu uma forma. É curioso pensar nisso hoje. Até aquele momento eu não tinha uma forma, não que eu fosse uma ameba, longe disso, eu apenas vivia tão oculta nas sombras que nunca atentei para qual era minha forma ou quais eram minhas extremidades.

Foi assim que como se uma luz se ascendesse no meu cômodo dentro de ti... espera. Cômodo? De acordo com a psicanálise eu, muito provavelmente, sou uma parte da sua consciência, do seu id. Sendo assim eu sou seu inconsciente. Sou responsável por cada atitude sem pensar. Tresloucada. Tsc. Eu sei que gosta de assumir suas atitudes, menina, mas tens que admitir que já usou o meu mostrar de dentes para explicar diversas atitudes suas, até mesmo com a menina-loba.

Falar nela me traz uma paz confusa. Acho que não convivemos na natureza. Se bem que em regiões com neve... É, hoje não é o momento de falar disso. Ainda mais pelo fato de não sermos seres biológicos... quer dizer, aquela criatura tem um gosto bom. Forma estranha de me expressar, mas é assim que é, aquela loba tem um gosto diferente de tudo que já provei. Provei não, provamos.

A imensa verdade, menina, é que temos o mesmo péssimo costume de tergiversar e nos perdermos no que dizíamos. Pensar que comecei a falar de minha origem e acabei indo parar nela. De veras estranho não é mesmo? Eu sou grata por você, sei que também és por mim. Temos uma simbiose perigosa aqui.

Perigosa sim. Pois quando lhe surgem momentos ruins eu assumo, me recompensa com suas caças. O pagamento é justo, eu sei, mas te deixo com pouco do que sentir, sobretudo nas suas caçadas noite a dentro. Em contrapartida te deixo sentir cada mínimo prazer com a loba. O perigo está justamente nesse instante, eu sei que não devo, mas acabo te deixando ir com ela, torço para que nunca aconteça nada de ruim e... enfim.

Sim, minha menina, eu torço por você. Sempre torci e nunca escondi isso de ninguém. Por isso assumi o controle várias vezes, para que pudesse se remontar, se reconstruir. Aparentemente eu soube guiar a gente até um momento melhor, não é mesmo?

Ah sim, falava sobre minha origem e como me nomeaste. Sua fascinação pelo oriente até te fez comprar uma casa no bairro mais nipônico da Metrópole. Pena que não pudemos ficar lá muito tempo. Céus, sim. Foco. Naquela noite na praia, depois dos ocorridos na estrada, eu me lembro da Lua brotando no mar, foi ali que te segurei o mais firme que pude e que, em homenagem à sua paixão por ela passou a me chamar de Tsuki. Lua em japonês. Confesso que não entendi bem como uma menina com os cabelos dourados como o por-de-sol pode ter tamanha adoração por algo tão ligado com as trevas. 

Durante as caçadas na Metrópole entendi.

Gosto de nossas conversas, menina. Tudo bem, você odeia que eu te chame assim, como preferes? Janaína? Posso lhe chamar assim se quiseres, mesmo que para mim siga sempre sendo a minha menina. Vou me calar. A loba chegou. Chegou sim. Sinto seu cheiro de longe. Como é que se diz mesmo? Itadakimassu.

sábado, 7 de março de 2020

Ruptura II*

Talvez o pior luto seja o luto das pessoas vivas. Aquele que você sabe onde as pessoas estão, onde elas vão, ainda tem uma certa noção da rotina delas, às vezes até encontra com elas em algum corredor, rua, esquina em comum, vê num reflexo. Assim foram aqueles dias antes da minha explosão, aquele maldito momento em que eu estava com a porcaria de uma faca na mão e a visão turvou.

Agora não vale a pena tentar relativizar, achar uma desculpa mirabolante. Tive um ápice de fúria. Não tem essa de possessão demoníaca ou qualquer coisa do tipo. Fui apenas eu, Janaína Barcelos, sem controle da minha raiva. Nos dias que antecederam aquela situação eu tive inúmeros momentos em que eu me desprendi de meus pais, eu os via como estranhos. Por dentro sabia que eram meus pais, mas lá no fundo eu sabia que eram dois estranhos. Parece cruel pensar assim, mas era como eu me sentia. E na época eu sabia que era completamente errado pensar nisso daquela forma.

Aquele inverno foi comprido. Depois do incidente com a faca eu tentei efetivamente morrer também. Na verdade eu já estava morta, faltava tomar consciência disso. Porém quando tentei resolver a situação eu não consegui. Na real não deixaram. Quando dei por mim estava em um lugar bonito, árvores, o som de um riacho... era bom estar ali apesar do que acontecia quando ninguém olhava. Uma das meninas que estava lá mais tempo dizia que alguns monitores davam em cima de algumas internas. Não duvido, mas aquela mesma menina dizia que estava sendo perseguida por alienígenas. Também não há de se duvidar que uma menina chamada Clarisse tenha tanto a oferecer.

Desculpa. De novo me desviei da história principal, às vezes tenho desses devaneios e acabo esquecendo o que estava falando... ah sim, do meu luto. Depois que saí daqueles dias em repouso tudo pareceu tão alheio, tão distante. Tanto faz o fato de eu estar chapada de calmantes. Hoje sei que pode ter sido uma despersonalização, uma forma que minha mente encontrou para que eu pudesse suportar toda aquela situação. E confesso que era uma sensação gostosa no começo, eu me via de cima, como se estivesse vendo outra pessoa. Aliás, esquizofrenia ou não, era outra pessoa. Ou melhor, outra criatura. Tsuki, minha raposa interna quem controlou cada ação naqueles dias.

Foi só naquele dia que viajei que ela me deixou retomar o controle. Era como se ela pudesse prever o que viria... você é vidente, Tsuki? Agora você se cala e finge dormir. Muito bom, ótima atriz. Kitsune. Cheguei, encontrei com meus pais, jantamos no shopping de rico. Na época eu ainda procurava alguma coisa para direcionar a vida, alguma coleção que pudesse ocupar minha cabeça, definir um hobby podia me ajudar a pensar em uma futura carreira. Olhando hoje parece tão idiota esse pensamento. Meu pai tinha um carro bom. Confiável. Espaçoso. Naquela época eu não parava para pensar se era compatível com a renda que ele tinha. Penso que ele tinha seus rolos e suas formas não-ortodoxas de ganhar algum extra, afinal, trabalhando com despacho aduaneiro sempre é possível liberar uma carga antes da hora, basta carimbar no lugar certo.

No meio do caminho uma chuva torrencial despencou. Em nenhum momento cogitamos parar e esperar aquela tempestade passar. Muitos carros pela estrada fizeram isso, dava para ver os pisca-alerta no acostamento. A entrada dos postos de gasolina tinham até ônibus estacionados. Alguns poucos carros ainda se arriscavam por aquele asfalto molhado, foi quando uma imperfeição qualquer da estrada fez ter um acumulo de água justamente na entrada de uma curva. O volante não virou. O carro foi reto. Lembro de chacoalhar primeiro para trás quando saltamos a canaleta na lateral da estrada e depois o baque violento ao achar uma parede de pedras. Bati a testa no encosto do banco de meu pai. O rádio tocou mais uma nota e parou. Merda, não consigo lembrar a música que tocava, lembro que era boa. Depois disso apenas o som da chuva no teto do carro. Uma paz. Uma tranquilidade que me fez crer que eu tinha morrido. Mas é aquela coisa, esse tipo de sensação nunca dura muito, logo voltei pra dentro do carro. 

Os dois airbags da frente fizeram sua função. Mas o impacto foi grande demais. Lembro da voz serena deles dizendo que tudo ia ficar bem. Meu pai dizendo que dali alguns dias íamos andar de patins na praia. Minha mãe dizendo que tudo bem eu fazer faculdade que não dava dinheiro no começo, eles podiam me dar o suporte que eu precisasse para dar os primeiros passos sozinha. Aquela paz. As vozes eram serenas. Conversamos muito. Colocamos todas as desavenças em ordem. As arestas aparadas. Não sei precisar quanto tempo ficamos ali. Sei que era agradável, apesar da chuva ter engrossado consideravelmente não chovia dentro do carro. Foi quando vi uma sirene piscando em vermelho e branco atrás de nós. A noite começava a cair e a chuva não cessava. Era o resgate. Um bombeiro, acho que no uniforme estava escrito sargento Bastos ou algo assim, não me recordo muito bem. Torci o pé ao sair do carro, mas estava tudo bem.

No dia seguinte acordei no hospital. Três médicos estavam próximos da minha cama. Falaram que meus pais não sobreviveram. Foi um baque maior que o choque com a pedra. Como? Estávamos conversando até acharem a gente. Na semana seguinte o laudo da perícia dizia que, mesmo com o airbag, o impacto foi forte demais e eles morreram na hora. Como? Conversamos por um tempão. Foi você, Tsuki? Não, claro que não. Ela não seria capaz de brincar com algo tão sério. Ou seria? O foda que, por dentro eu sabia que eles tinham morrido no impacto. Vi as fotos do carro. Ficou parecendo aqueles carrinhos do Japão, super compactos. Mesmo onde eu fiquei deformou o suficiente para que eu tivesse algum ferimento. As manchas roxas na perna, braços e peito deviam ser isso.

Toda aquela conversa foi uma elegia. Uma forma que minha mente encontrou de viver aquele luto. Foi ali que senti que não mais pertencia àquela região, àquela família. Aquele lugar se tornou algo triste. Mas, mesmo assim, não chorei tudo aquilo. Os planos. Os projetos borbulharam dentro da minha cabeça. Se era por falta de sinal aqui estava um bem assinalado, gigantesco, um farol. Foi uma embarque em um ônibus, mala com roupas e umas lembranças e uma mochila com miudeza, uma voz quase robótica anunciando o embarque para a Metrópole. Aspirei o ar daquela terra uma última vez e embarquei. Foi ali que tive a minha primeira e, até agora, maior ruptura.



* Por Janaína Barcelos