quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Beco

Faltavam dez minutos para o horário combinando quando Janaína rumou para a praça de alimentação. Por ser véspera de final de semana só haviam jovens casais, grupos de amigos e uma ou outra pessoa soterrada dentro de seus próprios fones de ouvido. Se não estivesse com um encontro marcado Janaína seria do último grupo, com os fones enterrados o mais fundo possível dentro das orelhas de modo que abafasse ao máximo os barulhos externos, odiava ouvir vozes, pessoas rindo ao seu redor lhe faziam pensar que ela era o assunto das vozes, ela era o motivo dos risos. Às vezes era complexada demais. Credo.

Caminhou lentamente como se procurasse alguém e, pela primeira vez em anos, procurava mesmo. Puxou o celular do bolso da saia e ponderou um instante. Quando era mais nova sempre se perguntava porque saias não tinham bolso e agora cá estava com uma saia com ele. Checou as mensagens. Nada. Olhou em volta minuciosamente, ninguém parecido com uma loba. Com a agilidade de quem escrevia demais na tela do diminuto aparelho mandou mensagem.

"Já chegou?"

Dez segundos e a resposta veio. Janaína gostou da agilidade. Estava com o coração na mão e nenhuma gota de álcool no sangue. Quase cogitou cancelar tudo, mas ao ler a resposta sua pulsação foi tão forte que pensou se tinha risco de uma arritmia.

"Já, tô na escada rolante, como você está?"

Tinham combinado tudo tão nas coxas que nem tinham dito com que roupa iriam nem nada do tipo. Janaína era amadora demais nisso. E se a loba fosse uma traficante de órgãos? Sorriu com a própria paranoia. Dedilhou uma resposta tipicamente sua, das que faria respondendo Helena.

"De roupa, infelizmente."

Antes que a loba pudesse responder Janaína completou.

"Saia longa, blusa e cabelo solto... e você?"

A resposta não veio. Não precisou. Érika havia chego. 

- Olá... Janaína?

- Loba?

- Não fale da minha identidade secreta - a morena riu enquanto Janaína levou alguns instantes para se acostumar à energia de Érika e entender como piada - E aí, tudo bem? - Trocaram beijo no rosto como se fossem velhas amigas se encontrando.

- Ah, tudo, só meio de ressaca - Janaína riu da própria mentira - e você, ta boa?

- Tô sim... quer ir pra um lugar mais daora?

Janaína não sabia se estava afim de sair do shopping e ir para um lugar qualquer. Toda aquela experiência era nova para ela, talvez fosse melhor ir com calma e não ir para o motel logo de cara. Pensar nisso a fez corar. Érika notou a timidez da mulher à sua frente. Não era tão gostosa quanto havia sonhado, mas também não era de todo ruim. Corpo normal, cabelos loiros meio castanhos, pele branca típica do sul. A sugestão da morena foi um bar de rock um pouco afastado, não queria correr o risco de ser pega por algum parente ou até mesmo vizinha fofoqueira. Por alguns segundos se sentiu fora da lei cometendo um crime. E, sem saber ao certo o motivo, adorou a sensação.

Houve alguma hesitação da raposa quanto ao convite. Claro que ela queria ir para um lugar mais reservado, mais silencioso e até mesmo mais escondido. Apesar da Metrópole ter seus mais de doze milhões de habitantes sempre encontrava algum conhecido da faculdade, da sua rua, do seu prédio. Ao mesmo tempo que a cidade era imensa parecia um ovo. Ela acabou topando. Tinha ouvido falar do lugar que Érika sugeriu... ou não? Deixou a morena em frente do shopping enquanto ia no estacionamento do outro lado da rua buscar o carro. Com a destreza de uma piloto de fuga Janaína estacionou em fila dupla em frente de Érika que logo embarcou colocando o cinto.

Dentro do carro Janaína notou que Érika tinha nas mãos uma carteira de cigarros. Primeiro ponto negativo de Érika: fumava. Se bem que ela não parecia uma fumante típica. A loba colocou a carteira de cigarros, que tinha comprado no bar em frente do shopping, no porta-luvas do carro, como se fosse seu. Não sabia porque, mas se sentia a vontade com Janaína, mesmo ela sendo terrivelmente quieta. 

- Você é bem quieta - Érika falou olhando de canto de olho para Janaína que parecia compenetrada com a direção. - Tá tudo bem mesmo?

- Hum? - Janaína saiu de seu transe, pensava em Helena e onde ela poderia estar, a mensagem de que ela voltaria já tinha completado quase um mês e nada dela aparecer, na verdade nem mesmo uma resposta, tudo isso a preocupava muito, ao longe a voz de Érika parecia uma lembrança de porque ela estava ali agora - Está sim... só estava pensando...

- É? - Érika se virou sorrindo, já pensou em mil coisas que sempre quis fazer e agora estava com a oportunidade - E posso saber em que?

- Em uma amiga - Helena era muito mais que uma amiga, mesmo não tendo nada sanguíneo elas eram irmãs, mesmo não tendo nenhum laço romântico eram amantes, mesmo não sendo uma a terapeuta da outra eram confidentes.

- Amiga ou amiga algo mais?

- Amiga mesmo - Janaína era ótima em contar meias verdades - Foi viajar e não mandou mais notícias... mas sei que ela está bem, sabe se cuidar... - Deu a seta e virou para a esquerda seguindo orientações do GPS - ... eu espero.

- Logo ela aparece - Érika sentiu o clima ficar meio pesado - Mas me diz, fora ficar de madrugada na internet, você trabalha? Estuda? Namora?

- Aparece sim, se não eu arranco a espinha dela - Janaína sorriu para Érika a primeira vez desde que entraram no carro - Então, eu trabalho com publicidade, já me formei, não é meu costume ficar a madrugada toda na internet... ontem eu só estava... - Ponderou um instante parando atrás de um carro luxuoso no semáforo - Dando uma variada... mas e você? Trabalha? Estuda?

- Trabalho pra uma multinacional, nossos clientes estão na Rússia e na Ásia, aí fico on-line a madrugada toda - Érika também era boa em falar meias verdades - Estava pensando em voltar a estudar, mas ainda não, tenho umas coisas pra resolver antes...

- Tipo um casamento? - Janaína era ótima observadora, tal qual uma raposa percebeu na mão esquerda da loba o anel dourado, devia ser um quilate baixo, talvez fosse apenas folheado a ouro e não de ouro mesmo, sabia de uma pessoa que conseguiria identificar isso em uma olhada, mas ela estava longe demais e também não importava - Desculpa, sou ótima observadora, quando não estou me vendendo para alguma agência de publicidade costumo escrever.

- Eu... - Érika, que sempre foi muito falante a ponto de abafar outras pessoas com suas falas agora calou um instante, por mais que tentasse correr a verdade sempre a alcançava - Quanto à isso estou bem resolvida.

- Está mesmo? Quero dizer, não estou julgando - Janaína pensou um instante - É que on-line de madrugada, no bate-papo, bebendo tequila em plena quinta-feira, com aquele cenário atrás...

- Olha só - Érika saiu da postura defensiva e resolveu ver quais cartas a loira tinha nas mãos - Estou ouvindo sua teoria.

- Então - A rua estava vazia, a manutenção do carro estava boa ao ponto de se poder largar o volante e ele seguir em linha reta, Janaína estralou os dedos enquanto o fluxo de veículos ao seu lado ia ficando cada vez menor, sinal de que se aproximavam de seu destino - Eu apostaria que pela qualidade da câmera, você trabalha com ela, pela sua desenvoltura... - Janaína sorriu passando a língua no canto esquerdo dos lábios - ... você trabalha como camgirl ou algo assim.

Érika empalideceu por completo. Foi desmascarada tão rapidamente que pensou quantas pessoas mais deveriam desconfiar isso dela, sentiu o corpo inteiro gelar. Balançou a cabeça negativamente buscando retomar o controle da situação. Se bem que era a primeira vez que saía com alguém que conheceu na internet. Tinha duas opções: negar tudo ou confirmar. Olhou para a direita, os prédios baixos tomavam conta da lateral juntamente com alguns muros pichados e algumas árvores, sem saber ao certo porque se sentia confortável com Janaína, talvez porque ela não representasse nenhuma ameaça.

- Você é ótima observadora, Raposa. - Érika passou a olhar fixamente para Janaína como se buscasse alguma coisa aparente para ter como trunfo - Acertou em cheio.

Janaína sorriu, sempre teve essa espécie de dom/maldição de conseguir ler as pessoas e descobrir coisas sobre elas antes mesmo delas falarem. Foi assim que sentiu que Sophia não era uma pessoa tão boa assim e, tão logo pode, se afastou. E com Helena esse "poder" parecia não funcionar, porque não pressentiu nada dela. Antes que pudesse pensar em algo, o GPS indicou que o lugar era aquele. Desconectou o aparelho vendo que tinham levado pouco menos de meia hora para vir do shopping ali e que o silêncio foi o que imperou na conversa das duas. Era bom, gostava de silêncio, mesmo que fosse um encontro ou algo do tipo. Pensar em encontro a relembrou de Helena, não era raro se encontrarem em situações absurdas.

O carro foi parado em um estacionamento ao lado do bar de rock que Érika dizia ser um bom lugar. Fachada bem cuidada, música boa vazava pela porta semi-aberta, ambiente sem fumaça... Janaína conferiu se o carro estava bem fechado e ligou o alarme. Afinal, confiava em deus, mas sempre trancava as portas e janelas. Apesar de já ter passado das vinte e duas horas o local não estava tão cheio. Novamente o pensamento de Janaína foi para Helena. Suspirou enquanto deixou que Érika decidisse o cardápio. A morena optou por uma porção de fritas e, quando foi pedir dois chopes Janaína recusou, disse que estava dirigindo. Uma meia verdade para encobrir que não gostava de cerveja, a loba pareceu aceitar e a raposa optou por um guaraná.

O papo aos poucos foi fluindo, Érika se soltava bem com álcool. Janaína, por ser quase imune aos efeitos de bebida que não fosse sono, se soltava no mesmo ritmo. Falavam de fatos da vida, de planos de carreira até chegarem ao ponto exato que ambas tinham pensado em chegar. Colocar desejos para fora. Depois do segundo chope a Loba estava mais liberta das amarras que a prendiam dos desejos. Já a raposa estava em uma fase da vida que estava disposta a experimentar tudo que pudesse, mesmo que isso pudesse a matar, afinal se Helena podia, por que Janaína não podia?

Ainda restavam alguns palitos de batata no prato, uns pedaços de bacon relegados à mistura de ketchup e maionese que Érika havia feito no seu canto da tigela. Na caneca da Loba não tinham mais que dois dedos do terceiro chope. No copo da Raposa não deveria haver um dedo de refrigerante - agora de limão. Do seu lado do prato Janaína deixou fragmentos de cebolinha. Helena adorava cebolinha na batata frita, hoje ela pensava demais na amiga que tinha sumido, mandado um sinal de vida e sumido novamente. Dizem que quando se pensa muito em uma pessoa ela tende a aparecer, como se atendesse a um chamado.

- Raposa... - Érika estava com a voz mais mansa, não estava bêbada, mas estava com a língua mais enrolada - ... o que acha da gente ir para um lugar mais reservado?

- Vai acabar pegando esse apelido - Janaína riu brevemente, mordiscou o lábio olhando para Érika - Acho ótimo.

Como se fosse um movimento ensaiado a exaustão Érika chamou o garçom enquanto Janaína procurava um motel no aplicativo de mapas. Tão logo a conta veio Janaína comprou uma embalagem de bala de eucalipto, leu em algum lugar que aquela bala somada ao gosto de outra pessoa era algo incrível. Hoje testaria tal teoria. Érika, ao ver o movimento de Janaína teve um pensamento muito semelhante, porém já havia testado com Wellington. Pensar nele trouxe uma certa dor no peito que durou o tempo exato de uma respiração, não era traição porque era com uma mulher e não com outro homem. Acreditou nessa própria versão de não-adultério. Funcionou na sua cabeça.

Érika saiu dois passos atrás de Janaína que já procurava as chaves do carro na bolsa. Com a chave na mão checou em volta, não havia nada muito suspeito além de um beco entre dois prédios baixos onde, com toda a certeza, várias prostitutas faziam seu trabalho. Janaína pensou nisso e logo ponderou que o trabalho de Érika era quase isso a diferença é que a camisinha era o firewall do computador. Fixou o olhar ali enquanto a morena se aproximou esperando o destravamento das portas. Parecia haver movimento, talvez fosse sua imaginação. 

Assim que Janaína entrou Érika demorou-se um segundo, talvez o álcool tivesse fazendo efeito e os movimentos da Loba ficavam mais lentos. Um dos vultos saiu do beco correndo na direção do carro. A Raposa pensou em arrancar, podia ser um assalto, mas algo a impediu de sair com o carro, por isso acompanhou a corrida. Uma mulher, jovem, veio aos berros, falava algo sobre ali não ser seguro ou algo do tipo. Um estalo e o instinto de ser humano vindo do interior fez Janaína descer do carro para ajudar. 

Seu coração parou quando o vulto vindo definiu-se em sua mente. Afastou os lábios. Completamente em choque. Mas quando? Como? Não fazia sentido. Érika, acostumada aos desesperos da cidade, ao ver a moça com sangue, catatônica e quase desmaiada a posicionou deitada no banco traseiro do carro e já se posicionou no banco do passageiro fechando a porta. Janaína seguia parada. Tudo aquilo não fazia sentido. Um grito vindo do interior do veículo a puxou de volta à realidade. Se colocou na pilotagem e saiu em disparada enquanto a Loba buscava um hospital ou local que pudesse atender a desconhecida. A Raposa só estava reagindo à toda aquela situação a que foi exposta. Foi quando uma voz vinda do banco traseiro a fez despertar. 

A voz chamou seu nome. A Loba não entendeu nada. Janaína entendeu menos ainda a puta coincidência. Doze milhões de pessoas, milhares de ruas, centenas de becos escuros e do único que estava perto saiu a única pessoa que Janaína queria encontrar. Seria obra de um deus? Milagre de ano novo? Não sabia dizer. O que importa é que seu rolê acabaria agora. Ao diminuir para passar em um semáforo que piscava amarelo, a Raposa explicou para Loba quem era a pessoa, a incrível cagada disso acontecer ali, justamente hoje. Érika demonstrou entender, apesar de trabalhar com o que trabalhava tinha uma religiosidade forte o suficiente para acreditar que foi deus quem fez a moça aparecer e impedir que as duas acabassem no motel. Janaína disse que não sentia que precisava levar ninguém ao hospital, que ela resolvia, a Loba entendeu e pediu para lhe deixar em alguma estação do metrô. A loira não concordou e levou a morena o mais próximo possível de casa. Passavam das quatro da manhã quando a Loba deu um beijo suave nos lábios da Raposa e disse que ainda não ia desistir dela, demorasse o tempo que demorasse. Era o álcool falando.

Como último pedido da noite Janaína pediu ajuda para colocar a passageira no banco ao lado do seu e a fixar com o cinto. Ela logo acordaria. A Raposa conhecia esse tipo de reação, primeiro acelerada, depois alguns machucados leves e por fim histeria. Vários colegas de faculdade tinham isso nos finais de semana. As duas despediram-se com um beijo mais ardente. Era o primeiro beijo de Janaína em outra mulher. Não era o primeiro mas certamente o melhor beijo de Érika em outra mulher. A Raposa pediu alguns dias para resolver tudo e marcarem novamente, dessa vez no apartamento dela. A Loba concordou e aceitou o convite. Enfim Janaína saiu com o carro agradecendo a ajuda. Ao ver o corpo despertando com uma respiração pesada a loira sorriu diminuindo a velocidade do carro. Tanta coisa passou por sua cabeça na última hora que não conseguia concatenar os pensamentos e pensar em nada para dizer. Respirou fundo e, num suspiro aliviado, disse como a quem desperta depois de uma bela noite de sono em um tom de voz tão doce que faria inveja à qualquer doceria. A intrusa merecia esse tom doce, pelo menos agora. 

- Helena?

sábado, 22 de dezembro de 2018

Loba

Mandou um beijo com a palma da mão, agradeceu pela companhia até agora e deu tchau fechando a câmera. Suspirou aliviada deixando o corpo cair na cama. Tirou a peruca rosa a jogando para o lado. De olhos abertos Érika viu o teto do quarto sujo. Qualquer dia tinha de limpar, se bem que esse cômodo aqui só precisava estar arrumado o que ela queria mostrar nas lentes - no caso a cama, uma parede com funkos que ganhou de presente e um grande quadro de uma pinup que achou em uma loja por um preço ridículo.


Várias vezes pensou em parar. Aquilo ali não era vida. O pior é que ela gostava, fora que era um puta complemento de renda. Se ficasse apenas como garçonete nos finais de semana não poderia manter o padrão de vida que seus filhos tinham. Terça, quarta e quinta tinha show marcado. Enquanto alcançou o celular chegou na mesma conclusão que sempre chegava: pelo menos não era prostituição na rua, ela apenas se mostrava na câmera e sempre com quem pudesse pagar mais. Em um mês bom tirava quase oitocentos dólares limpos. A maior parte ia para a casa e uma parte guarva para alguma aventura.


Claro que ela tinha um sonho secreto. Ainda se lembrava do dia que uma russa lhe pagou cinquenta dólares para ficarem conversando, bebendo e se mostrando na câmera. Pensar nisso lhe deixou molhada. Balançou a cabeça negativamente. Puxou do canto da cama a calcinha que havia jogado longe, o sutiã que estava no mesmo canto também foi vestido junto do robe de uma marca vagabunda que havia comprado na internet mas era bonito. Quase confortável.


Do armário atrás do notebook pegou a garrafa de tequila. A mesma que havia comprado para um show onde, a cada dez dólares, viraria uma dose. Bebeu quatro doses naquele dia, dormiu com a câmera aberta. Ainda tinham dois terços de garrafa. Por trabalhar no horário da Rússia e da Ásia sempre trocava o dia pela noite e agora não tinha um pingo de sono. Olhou o relógio. Duas e cinquenta e três. Pensou em Amanda, sua filha com Wellingtown, semana que vem ela faria seis anos e passaria a ir para a escola. Tobias ainda tinha seus dois anos. E pensar que oito anos atrás teve uma oportunidade de ir embora do país.


Abriu a garrafa arrancando a tampa com a boca. Pensou que plot twist azedo se tornou sua vida. Bebeu um farto gole para abafar esse pensamento. Resolveu colocar seu fetiche em dia. No seu idioma. Entrou na sala de bate-papo. Agradecia aos céus por elas ainda existirem. Sempre ficava na câmera contra outra câmera. Perdeu as contas de quantas em vez de uma mulher viu outra coisa. Lamentável.

Foi quando viu um nick diferente. Desde sempre se dizia a Loba Morena. E agora na sua tela surgia a Raposa Solitária. Será que haviam parentesco entre lobos e raposas? Não sabia e não estava com a menor vontade de pesquisar. Bebeu um gole curto dando seu já clássico olá. Quatro minutos depois a Raposa respondeu.

Mais um gole. Um trovão rompeu o céu madruguento anunciando uma tempestade. Comentou com a Raposa que disse ter ouvido o mesmo. Não deviam morar longe. Será que hoje teria coragem de ir até o fim? Bebeu um gole longo. A metade da garrafa já ficou para trás. Hoje ia ver até onde era capaz de ir.

Falaram sobre inúmeros assuntos até chegar ao ponto da curiosidade sobre quem era por trás. Dessa vez não estava pronta caso fosse um homem. Hesitou um instante. Não haviam homens tão interessantes acordados esse horário.

Carregando. Érika viu o próprio corpo refletido na imagem da própria câmera. Um segundo mais e apareceu o corpo da Raposa. Os fios loiros cobriam uma camisola simples de tom rosa-chá. Mais algumas frases e logo decidiram mostrar rosto. Érika tinha um rosto ovalado, olhos pequenos, boca estreita e nariz fino, tudo herdado de seu avô, que veio do Japão. A Raposa propôs um brinde. O brinde aceito ambas beberam fartos goles. A Loba tequila, a Raposa vodka.

Logo o calor - uma desculpa - as obrigou a despirem-se. Érika sentiu o corpo tremer. A respiração subiu, o sorriso fino ao ver o corpo extremamente normal da Raposa lhe trouxe planos. Agora era a hora de realizar aquele velho plano. Trocaram telefones.

Assim a Loba Morena voltou a ser Érika e, agora, a Raposa Solitária passou a se chamar Janaína. Uma ligação se fez para confirmar as identidades. Obviamente todo aquele sangue no álcool das duas trouxe uma proposta que ninguém sabe de onde surgiu. Mas terminou com Érika retorcendo os lençóis da cama bagunçando tudo. Os gemidos baixos para não acordar ninguém dos quartos vizinhos era abafado pelo travesseiro.

Silêncio. Depois de quatro minutos as vozes voltaram à chamada telefônica. Érika tomou a iniciativa, tinha que colocar todo aquele desejo para fora, aproveitar a oportunidade. Propôs um encontro para já, o dia seguinte. Final da tarde. Janaína aceitou propondo local público. Um shopping para depois decidirem para onde iriam.

A ligação acabou com Érika com um sorriso imenso. Já devia ter machucado o lábio de tanto que o mordiscou. Se levantou, arrumou o lençol, desligou o notebook e caiu na cama. Acordou no meio da tarde com Wellington a chamando. Ele sabia que ela ganhava dinheiro com a internet. Ela dizia que de madrugada era mais propício para trabalhar porque alguns dos clientes que prestava consultoria eram asiáticos. Sua meia verdade fazia sentido. Meia verdade. Meia mentira.

Limpou o quarto, cuidou das crianças. Pensou novamente em largar tudo. Mas a grana era boa demais pra abrir mão assim. Pegou o telefone. Centenas de mensagens que foram sumariamente ignoradas. Tudo aquilo não podia ter sido fogo-de-palha, enviou uma mensagem para Janaína confirmando o encontro.

Se sentia errada mentindo. Mas era preciso, não haviam empregos para mãe de duas crianças. Todo mundo achava lindo um par de filhos mas ninguém sabia o que ela e Wellington sofriam para cuidar. Quando já se dava por resignada, seu encontro havia ido por água abaixo a tela do pequeno aparelho com uma rachadura na tela na lateral superior esquerda acendeu. Sorriu de canto. Aos viventes da casa disse que tinha uma reunião na sede da empresa que ficava do outro lado da cidade e, por isso, frente às últimas luzes do dia, sairia rumo ao outro lado da cidade. Sozinha no quarto vestiu uma calça jeans normal, uma blusa preta do Nirvana, nos pés um all star baixo. Na bolsa levava, além do celular, chaves de casa, algum dinheiro e spray de pimenta uma muda de roupa íntima mais sensual, infelizmente conforto e sensualidade não passavam pelos mesmos departamentos nas fábricas de lingerie. Deu um beijo em todos e seguiu rumo a porta.

Já no portão respondeu que estava saindo, mesmo que faltasse mais de uma hora para a hora combinada. Aproveitaria para passar pela loja e ver qual era o preço daquele telefone que Amanda queria e depois shopping. Se bem que ia propor um bar de rock não muito longe dali.

Dia de realizar desejos.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Raposa

Eram quase três horas da manhã, amanhã ainda era quinta-feira e cá estava Janaína em frente ao computador. Queria algo que lhe fervesse o sangue, algo que lhe desse algum prazer, seja mental, sexual, espiritual... tanto faz. Queria algo diferente essa noite.

Não devia ter bebido.

Era o pensamento que corria por sua mente nesse instante. Em uma aba anônima do navegador adentrou nas salas de bate papo. Se surpreendeu por elas ainda existirem. A principio colocou para espionar. A imensa maioria eram de homens querendo ver outros homens. Bem dizem que a noite todos os gatos são pardos. Apostaria tudo que tinha que boa parte ali eram casados querendo algo diferente das esposas que dormiam no quarto.

Bebeu mais um farto gole.

As salas comuns só tinham homens tarados ou robôs divulgando sites pornográficos decadentes. Ficou saltando entre as várias salas até ter uma espécie de iluminação e ir para uma sala de lésbicas, não que fosse, mas queria algo mais do que uma simples masturbação vazia vendo outra pessoa. Queria algo que lhe deturpasse o pensamento, alguém com um bom papo, não apenas abrir a câmera e praticar algo sem sentimento.

Foi beber mais um gole, alguém lhe chamou.

Havia entrado com o nick mais idiota que sua cabeça alcoolizada conseguiu pensar naquele momento: Raposa Solitária. O mais incrível é que Janaína tinha total consciência de tudo que fazia. Não era daquelas que bebia e esquecia tudo que fez. Ela esquecia das coisas, mas não era por causa da bebida, a imensa maioria eram coisas do seu passado que não fazia a menor questão de lembrar.

Ao por a garrafa na boca lembrou que tinha sido chamada.

Loba Morena. Por um instante pensou em zoofilia ou naqueles documentários sobre a vida animal. Respondeu ao olá com outro olá. Não teve o mesmo "o que procura?" de outras conversas que havia tido naquela madrugada alcoólica. A segunda frase foi uma constatação do clima.

A garrafa foi para o lado.

Por um instante pensou no filo da raposa e dos lobos. Todos eram meio que parentes, abriu uma aba a mais no navegador. Mesma família. A raposa contou a feliz coincidência à loba. Conversaram inúmeras amenidades, trocaram receita de carne de panela, dramas. Claro que a raposa não contou a sua história. Aquela apenas Helena sabia.

A loba também bebia. Propuseram um brinde.

Resolveram abrir a câmera. Janaína não daria a mínima se a loba na verdade, fosse um lobo, não tinha dito nada que a pudesse identificar, não mostraria rosto, muito menos corpo nu. Do outro lado uma vasta cabeleira escura. Era uma mulher mesmo. Janaína sorriu de canto erguendo a garrafa de vodka vagabunda numa altura que pudesse ser capturada pela câmera. A loba fez o mesmo, a garrafa dela era de tequila.

Brindaram e o gole de ambas foi longo.

Conversaram mais. Quando o relógio mostrava além das quatro e meia da manhã as duas já tinham trocado inúmeras intimidades. Parte pela bebida, parte pelo próprio clima. O calor aumentou e obrigaram-se a despirem-se. Moravam na mesma cidade, bairros não muito distantes. Janaína mordiscou o lábio inferior enquanto pensava na imensa quantidade de coisas que poderia fazer.

Deu um gole imenso, secou a garrafa.

A loba comentou. A raposa sorriu descendo a câmera. Trocaram telefones. A vida era uma só. Assim a raposa virou Janaína e a loba Érika. Apesar do horário houve uma ligação para confirmar as identidades. Janaína saiu do bate-papo. Érika fez o mesmo. Ficaram apenas pela voz. Foi pela voz que veio a proposta da loba. Todo aquele álcool no sangue de Janaína a fez concordar. Logo se ouvia no cômodo gemidos baixos que precedeu um grande silêncio.

O calor vaporizou o álcool.

Combinaram de se encontrar no dia seguinte. Local público. O que Janaína estava fazendo? Quando a ligação acabou os primeiros raios de sol ousavam romper as cortinas. A cama completamente bagunçada, o corpo mais suado que o calor havia produzido. Adormeceu com um sorriso fino nos lábios e o sangue borbulhando em suas veias. Meia dúzia de horas depois acordou.

A ressaca veio com uma confirmação do encontro.

Janaína nunca foi daquelas que bebia e esquecia. Pelo contrário, tinha total consciência de tudo que fez. A mensagem enviada cinco minutos atrás. O sol reinava pleno no céu enquanto se arrastou para o banheiro fazer as higienes matinais. Havia um motivo para ter marcado em um shopping: havia comida e segurança. O horário marcado era dali quatro horas. Tomou um banho frio tanto para refrescar quanto fazer pensar melhor. Ao fim do banho enrolou a toalha nos cabelos e deu graças por morar sozinha. Abriu todas as portas do guarda-roupas e pensou em que roupa usaria. Calor. Lugar com ar condicionado. Uma saia longa com bolsos, uma blusa solta, uma sandália baixa, cabelo solto e maquiagem leve. Uma bolsa para levar as chaves e o celular. Pensar no aparelho lhe trouxe a necessidade de uma resposta.

Com um sorriso lascivo nos lábios digitou uma resposta em apenas cinco letras: claro. Na pior das hipóteses assistira qualquer filme no cinema e comeria algo diferente do que tinha em casa. Na melhor das hipóteses comeria algo diferente do que tinha em casa. Pareceu promissor.