quarta-feira, 22 de maio de 2019

Diário de Janaína

Havia um extremo silêncio da casa. Janaína e Helena estavam fora. Os únicos ruídos dentro da residência eram provenientes da rua, casas vizinhas ou do motor da geladeira de segunda-mão que tinham, provavelmente uma manutenção na borracha da porta resolveria parte do problema. Na sala as poucas almofadas estavam todas de um lado, lembrança de alguém que se esticou por ali. Além do eletrodoméstico antigo, a cozinha ainda possuía um fogão e uma pia limpa com meia dúzia de talhes, dois copos e três pratos no escorredor. No banheiro cremes, shampoos, tudo deixava explicito que as duas habitantes da casa eram mulheres. No quarto, além das camas, havia um guarda-roupas grande o suficiente para todas as roupas e calçados da dupla de jovens, no fundo do armário uma caixa resistia e destoava de tudo, dentro dela lembranças, fotos, alguns cartões postais, um tsuru muito bem feito e um diário. Não qualquer diário. O último diário que Janaína escreverá na sua vida e que sobreviveu ao trágico fim de todos os outros que era o fogo. Por isso nesse silêncio, entre um ruído de motor e outro, o diário leu-se.


10/05

Sabe, diário, cada dia que passa eu sinto mais raiva daquela pessoa que eu não devia ter esse sentimento. Sempre me cobrando uma perfeição impossível, uma qualidade esmerada ao extremo, foi quando, sem querer, eu descobri que ela inventava conquistas minhas para se exibir pros parentes ricos. Eu já sabia que ela gostava de contar uma vantagem que não existia pros outros, de sempre parecer melhor. Mas isso? Ridículo. Até vindo dela.
Apesar de termos uma boa condição financeira graças ao papai, sei que não posso depender deles a vida toda e, por isso, sempre dou um jeito de arrumar algum dinheiro. Até porque, se for pedir pra mamãe dinheiro ela vai querer que siga todos os ritos de uma licitação, com inúmeras provas de que o que quero comprar é necessário e de que eu estou indo no de menor preço. Por isso digito trabalhos pros outros, corrijo, tem dado o suficiente pra comprar algumas bobagenzinhas.


12/05

Eu sei que diário é algo pra ser feito todo dia, mas, sinceramente, algo repleto de regras já basta a convivência aqui em casa. Nunca fui a aluna mais popular da turma, mas também nunca deixei de ter algumas boas amigas, dessas de sair, ir no cinema, sentar junto na sala. Só que quem não gosta? Exatamente. Tudo porque uma delas, a Rê, não é normal. Nunca tive problemas em outras épocas da vida, mas, desde que a história do namoro da Renata com a Victória se espalhou, a vida das duas virou o inferno. Até mesmo pra sair com elas ficou um saco, é mais fácil eu dizer que vou pro bordel passar o dia dando do que dizer que vou no cinema com a Renata, Victória e Luísa. Não consigo entender porque as pessoas não podem aceitar a felicidade alheia.


12/05

HOJE EU TÔ PUTA DA CARA. Não com você, diário, você é meu ponto de equilíbrio, você é onde eu posso vir com a certeza que não vou ser julgada. A tarde eu disse que ia sair com umas amigas dizendo que não era a Rê e a Vic... não é que aquela velha me seguiu? Deu maior fuzuê, no meio do shopping lotado! Não gosto de datar, mas hoje era domingo e tipo, toda a cidade tava lá dentro. Vou tentar dormir antes que eu faça alguma besteira.


15/05

Já faziam alguns dias que eu estava namorando aquele vestido sabe? Bem anos 50, o tecido gostoso, nem quente nem frio, o comprimento pouco acima do joelho, bem rodado. Pois bem. Já tinham alguns dias que eu estava de olho nele, mas não podia pegar, estava sem dinheiro e os velhos não liberariam, "você já tem roupa demais, Janaína, pra que mais? Ainda um vestido? Filha minha não vai ficar usando esse tipo de vestido." Pois então. Eu corri atrás e consegui o dinheiro. Comprei. Trouxe escondido pra casa, vou usar no baile do mês que vem. Aliás, vai ser outro parto pra conseguir ir nele, vou ter que inventar alguma história mirabolante porque "filha minha não fica indo em baile, dê-se ao respeito, Janaína. Quer conhecer alguém pra namorar? Frequente os eventos sociais que vamos." Bléh.


26/05

Já se vão mais de dez dias que eu não escrevia né? Tudo tem passado tão rápido que não ta dando tempo de parar pra escrever. Mas amanhã é o baile e estou ansiosa. Já provei o vestido e criei a história de que ia passar a noite na casa da Luísa. A mãe dela cobriria tudo, ela é muito mais gente boa do que o que tenho em casa. Depois era só voltar pra cá, dormia na casa dela e já era. Como boa escorpiana sou boa maquinando planos.


27/05

Sabe, diário, ontem foi perfeito. Não só pelo baile mas pelo que aconteceu no baile. Já fazia um tempo que eu estava arrastando a maior asa pelo William e, no baile, descobri que era mútuo. Ficamos a primeira vez bem no meio da pista, sob o olhar de todo mundo. E daí? É incrível como as coisas ganham cor quando estamos... nossa. Quase escrevi "apaixonada", será?


30/05

Muito bem, senhor diário, pode confirmar: Estou namorando! Agora vamos poder ir os três casais no cinema sem ninguém segurando vela: Renata e Victória, Luisa e Rubens e eu e o William. Tudo segue tão lindo que tenho medo de amanhã depois dar algum problema.


30/06

Nossa, tem um mês que eu não escrevia aqui! Mas esse sumiço teve uma ótima razão: O namoro engrenou e ontem, depois de muito querer mas sempre ter algo que desse errado aconteceu. Devo confessar que todos os anos assistindo pornografia me tornaram uma pessoa que mais ou menos sabia o que fazer naquela hora. Não digo que não doeu, doeu sim, ainda tá doendo um pouquinho, mas a forma como ele conduziu tudo foi tão... mágica, que o prazer que senti foi maior que a dor e, devo dizer, foi muito melhor do que eu imaginava! Sinceramente, hoje eu posso dizer que estou feliz e me sentindo completa! Agora sei porque adulto gosta tando disso... é muito bom! Já quero de novo! O foda é que... deixa pra lá haha


17/07

Aconteceu algo que eu temia: Não, ainda não foi descobrirem que a filhinha toda puritana dela não é mais virgem. Eu não resisti a um convite da Rê e fui pra casa dela depois que a Vic foi embora pra Alemanha (!) tentar consolar e distrair a amiga... ao contrário do que o senhor pode pensar, senhor diário, a ida dela pra lá nada tem a ver com o namoro, sério. Os pais dela super não ligavam. Claro, achavam estranho, mas achavam que era uma fase e se ela estivesse feliz beleza. Por que aqui não pode ser assim? Enfim, voltando ao ocorrido: Foi sexta passada, depois da aula resolvi ir com a Rê pra casa dela, como amiga mesmo, sabe? Só que aí... Não sei direito como aconteceu, estávamos no quarto dela quando ela apareceu com um brinquedo daqueles dos filmes. Fiquei na fissura, queria experimentar. Óbvio que a Rê curtiu a ideia (sobretudo depois de umas ervas que ela arrumou, dizia que a Vic que fez ela aprender a gostar daquilo) e lá fomos nós.
Devo confessar que beijar uma garota é mais gostoso que beijar um garoto. Não sei se é pela mistura do gosto dos batons, se é pelo lábio macio, pela pele macia, pela mão mais quente ou por saber exatamente onde tocar sem causar desconforto.
No entanto, o que aconteceu não foi eu ter transado com a Renata, pelo contrário, a gente estava dando uns beijos quentes, talvez até acontecesse, mas o que aconteceu foi pior: Não sei se eu mencionei, mas o William é irmão da Renata e... bem. 
DEU MUITA MERDA.
Foda que eu adorei a situação do flagra. Claro que nada disso chegou em casa e passei meia hora numa loja exotérica pra tentar tirar o cheiro de erva de mim. 


18/07

A continuação da merda de ontem foi tão colossal que acho mais fácil por em tópicos:
- William e eu terminamos porque, em tese, eu traí ele.
- Renata e Victória terminaram também, porque o William correu contar pra ela.
- Renata tá putaça comigo.
- William idem.
- Victória nem preciso dizer.
- Luísa até tentou me apoiar, porém quando soube a história toda também ficou putaça comigo.
- Minha mãe ficou sabendo de tudo e tá puta comigo em um tamanho que não sei dimensionar. Saber que a filhazinha pura dela além de não ser mais virgem, tinha beijado outra garota e usado maconha.
- Meu pai cogitou me mandar pra fora do país, sugeri a Alemanha, ele ficou puto.
Resumindo: Todos os meus amigos tão putos comigo. Meus pais também. E eu? Eu tô adorando. Assim posso ficar em casa dormindo o dia inteiro sem incomodar e ser incomodada por ninguém.


22/07

O clima amenizou. Acho que meu pai falou com a minha mãe e ela relevou tudo o que aconteceu. Mas Renata e William não olham na minha cara. Luísa até conversa comigo mas não quer ficar no meio da briga. Foda-se, esse é o último ano mesmo. Ninguém vai se ver depois da formatura. Talvez aceite a ideia do velho de ir pra algum país estudar. Queria alguma coisa de comunicação, ele não gostou da ideia, diz que não vê futuro nisso.


14/08

Foi inevitável. Eu juro. Eu queria parar, eu sentia a fúria dentro de mim. Foi uma explosão, eu não queria fazer o movimento. Eu estava... lúcida o tempo todo e ainda assim fiz. Desculpa diário. Hoje é só isso.


16/08

Acho que chegou a hora de falar o que aconteceu: Eu fiz algumas pesquisas, alguns testes vocacionais e vi que minha área seria alguma coisa de publicidade ou jornalismo. A mãe disse que eu tinha que fazer algo que desse dinheiro, porque não ia ficar me sustentando o resto da vida. Eu explodi em raiva. Falei que dinheiro não era tudo na vida. Ela discordou. Disse que eu falava igual os drogados (hippies) que vendiam coisa na praia e ia virar mendiga viciada ou qualquer coisa dessas. Eu estava pondo os pratos na mesa pro jantar. Tinha posto um garfo e só sobrou na minha mão uma faca. Ela estava de costas e eu cravei a faca pouco abaixo do pescoço, ali não tem nada de órgão, a coluna é mais pro lado. Foi um segundo de névoa na visão, quando vi meia faca estava nela, meu pai me empurrando pra longe e eu no canto chorando muito. Ela tá bem, o corte, apesar de profundo, foi sem gravidade. Fazem dois dias que eu estou tremendo. Tô com medo, sozinha. Acho que vou resolver isso tudo de uma vez só, pelo bem de todo mundo, vou fazer o que já devia ter feito ano passado.


24/09

Sumi né? Depois do ocorrido eu estava decidida, eu ia me matar. Já tinha o plano pronto, mas meu pai me impediu e me colocou num spa "pra passar uns dias tranquilos", mas era uma clínica psiquiátrica mesmo. Foram duas semanas chorando sem parar, depois secou. Nada mais tinha tanto sentido. Não era raro eu e outros internos darmos um jeito de transar sem pensar em nada. Fazem quatro dias que uma voz dentro de mim se pronunciou, se intitulou raposa e disse que, todo momento extremo da minha vida, era com ela. Gostei disso. Raposa.


26/09

Voltei a frequentar a escola. Dopada. O corpo estava lá, respondia a estímulos, mas, de repente, tudo aquilo ficou tão alheio na minha frente. Tudo perdeu seu sentido. Quero mais me formar logo e ir embora daqui, esquecer essa terra.


01/10

Luísa voltou a falar comigo. Mas ela parecia diferente. Renata também. William, contrariado e magoado, se aproximava aos poucos. "Se aproxime, eu não mordo", era a voz da raposa comandando tudo. Falta um mês pra eu me tornar maior de idade. Já pensava o quanto de aventuras eu poderia viver. Sobretudo sexuais, tanta coisa que vi em vídeo e queria experimentar... mas aqui, nessa terra pequena, não rolava. Acalma teu fogo, raposa.


02/10

Falta um mês. Exatamente um mês. Não vejo mais nada, só isso. Nem mesmo as broncas dos velhos fazem efeito. Ah, ela se recuperou bem, só ficou uma imensa cicatriz nas costas. Diz ela que tem uma cirurgia marcada pra corrigir isso e me joga na cara que a culpa é minha. Mas logo em lembra do que fiz e... ela se cala. Tão bom ter lenha pra queimar.


02/11

Pedi pra não fazer festa. O pessoal da escola reclamou. O pessoal em casa reclamou. Os parentes reclamaram. Pau no cu deles. Com a identidade comprei uma bela garrafa de vodka e me fechei no quarto. Bebi, dormi, assisti umas coisas. Provavelmente foi o melhor aniversário da minha vida. Parabéns pra mim.


16/11

Mamãe foi fazer a tal cirurgia na cidade dos príncipes. Nem perguntei se podia ir junto, não estava afim de ficar passeando. Tinha muita coisa pra bolar sozinha. Na Metrópole tem muitos cursos bons, consigo achar uma casa num valor legal. Fora que ficar sozinha é muito bom. Chamei a Renata pra vir aqui pra gente terminar o que começamos meses atrás. Ela me chamou de doida. Acho que ela não vem.


21/11

Houveram uns complicadores na cirurgia. Francamente. Cirurgia estética pra remover uma cicatriz. Eles ficariam mais uns dias fora. A despensa estava cheia, mas acabei discutindo brevemente no telefone. Eu não queria ir lá. Sentia que algo ruim aconteceria se eu fosse. Será que a maioridade me trouxe poderes místicos? Eu hein.


28/11

Declinei da minha clausura escola-casa, casa-escola. Como já não haveriam mais provas e minhas notas estavam ótimas eu aceitei o convite pra ir pra cidade dos príncipes, amanhã ela recebe alta e diz que quer que eu esteja lá. 


13/12

Não sei que forças me colocaram a caneta à mão. Mas eu preciso escrever essa elegia e dizer que agora, por mais que eu ainda não tenha me dado conta disso, estou completamente sozinha no mundo. Mais que isso, agora estou, enfim, de partida dessa terra aqui. Preciso me distanciar desse lugar. Daqui uma semana saem os papéis do testamento e eu sou a única beneficiária. Vesti a raposa tão bem com lágrimas e dor nesses últimos dias que a Janaína real, por baixo dessa pele toda, seguiu indiferente, anestesiada, como se nada daquilo fosse real. Eu lembro que chovia. Não havia animosidade dentro daquele carro, apenas o silêncio, o som do motor, do rádio, dos outros carros e da chuva. Um instante. Um maldito instante e tudo aquilo se foi. De repente só sobrou eu. Apenas eu. Mal entrei na maioridade e já tenho que me virar sozinha. Eu ainda não sei como foi que não me machuquei. Deus? Sei lá. Tentaram vir me dar apoio, me ofereceram ajuda, um monte de coisa. Mas eu já tinha planos de ir embora, agora os planos verão a luz do dia.

Obrigado por tudo pai, mãe, um dia a gente se encontra. Amo vocês.

domingo, 5 de maio de 2019

Mar Redondo


Antonela ainda se lembrava do dia que chegou aqui com o trem. Já faziam uns bons vinte anos. Tanta coisa havia mudado não só em sua vida como no fato do trem não passar mais por aqui. Quer dizer, o trem de carga ainda chegava no porto, o de passageiros, no entanto, ficava na cidade anterior, igualmente litorânea, mas não tão bela quanto essa.

Convenhamos que ela se apaixonou pela arquitetura, depois com o acesso fácil às praias, à capital, depois vieram tantas outras paixões que ela já não sabia mais o que ainda lhe deixava ali, num amanhecer nebuloso de maio, vendo os barcos de passageiros indo para a ilha. Franziu a testa um instante vendo sua paixão mais recente vindo na sua direção.

O mar havia levado o coração do pai da pequena que corria com um cata-ventos a chamando de mãe. Faziam poucos minutos que Antonela havia deixado o esposo no porto, trabalhava embarcado, o próximo porto era no Uruguai e depois seguia para a China, ida e volta davam quase quarenta dias longe dele. Claro que a tecnologia aplacava um pouco da saudade e a presença de Beatriz, que pareceu entender a introspeção da mãe pois ao chegar ao lado dela se calou, facilitava os dias.

Apesar do bom salário dele ela não se limitava a dar uma de Penélope esperando seu Odisseu e, como boa guerreira que foi desde o dia que desceu daquele trem, lecionava durante o dia em uma escola perto dos trilhos. Enquanto seus colegas reclamavam da constante de locomotivas e da falta de planejamento do Estado em construir uma escola ali, ela não se importava tanto, tinha fascinação por aquelas máquinas mágicas que a trouxeram para cá e, a cada intervalo nas aulas lhe rememorava o motivo dela estar ali e de ali permanecer.

Com a ponta dos dedos calculou quanto tinha no bolso. Sempre andava com os documentos de Beatriz consigo pois não era raro duvidar da maternidade de Antonela, afinal havia puxado mais o pai, neto de escravos do que ela, bisneta de italianos. Num impulso perguntou do próximo barco pra ilha, dez minutos. Comprou a passagem, hoje o dia era de rever uma paixão mais antiga, a paixão que a trouxe aqui pra começo de conversa: o mar.