Grigory soltou grande lufada de ar enquanto abria os olhos de súbito se sentando e vendo, em sua frente, Irina que tinha entre o polegar e o indicador uma xícara que ele julgou ser café pelo cheiro.
- Não consigo dormir.
- É pelo cheiro de café?
- Não, esse cheiro traz uma paz, o problema é... diferente.
- Diferente... como? - Irina arqueou a sobrancelha enquanto bebericava mais um gole da bebida escura como a noite que cruzavam - É pelos...
- Sim, cada vez que passamos por um poste, um carro parado em uma passagem de nível, cada vez que um clarão invade a cabine passa um filme pela minha cabeça, fora esse som das rodas...
- O trem não foi uma boa escolha, afinal.
- O problema, Irina, não é o trem, sou eu.
- O único problema aqui, Grigory, é você achar que é o problema.
- Mas não sou?
- De maneira nenhuma - Ela bebeu mais um largo gole de café - Não fosse por você metade das pessoas nesse trem ainda estaria presa... ou pior - Vendo o olhar de Grigory descendo ela resolveu intervir colocando a mão no queixo dele - E eu não teria conhecido o amor da minha vida.
- Mas...
- Sem mas - Ela calou ele com a ponta dos dedos e, dando um passo adiante selou seus lábios nos dele - Se quiser café, podemos conversar até chegar em Lviv...
- Não, você vai querer descansar.
- Não, até estar fora daqui eu não vou querer pregar o olho.
- Se importa se eu não falar nada...? - Ele a olhou nos olhos temendo a reprimenda - Quero dizer...
- Não, de forma nenhuma.
- Eu só quero pedir uma coisa... se não for incomodo.
- Claro.
- Promete não rir?
- Fala logo - Irina tinha no semblante uma expressão que aparentava dureza, porém trazia no olhar uma doçura que Grigory não via faziam anos - Se for café eu posso pedir outro, o rapaz passa aqui de dez em dez minutos e...
- Não - Ele ruborizou a interrompendo - Eu só quero... que você segure minha mão, quer dizer, se isso parecer estranho.
Sem falar nada Irina tomou a mão de Grigory na sua dando, em seguida, um beijo suave e sentando-se ao seu lado. Ela não conseguia mensurar os horrores que ele havia passado, as coisas que devia ter feito para cumprir suas missões, se manter vivo e chegar até ali. Por mais que pudesse parecer uma novela publicada em jornal, ela, realmente, se apaixonou por ele no primeiro instante que o viu, ainda paramentado com a farda completa e a PPD-40 parcialmente suja de lama, assim como ele inteiro.
Enquanto sentia a mão dele apertar a sua se lembrava do local onde estavam quando soou o alarme, a casa de seus avós que era abrigo para duas dúzias de pessoas. Entre o som da primeira explosão e a habilidade dele em empurrar todos para a minúscula despensa que havia sido construída com pedras mais de uma centena de anos atrás. Ele era o último para entrar quando o clarão se fez na casa. Todos os tímpanos com o zumbido que persistiram por semanas a fio.
Porém com Grigory a sequela foi pior. Sua perna esquerda completamente dilacerada agora era uma poça de sangue, poeira e pólvora. Tão logo o bombardeio cessou médicos e enfermeiras passaram por ali. Foi um mês de muita morfina e lágrimas que acabaram com as chances dele voltar ao front. Não poderia ser em melhor hora, afinal, informações ainda desencontradas diziam que Berlim havia caído e a rendição era questão de dias.
Distantes ainda centenas de quilômetros de seu destino e, com os primeiros raios de sol rompendo o horizonte, a mão de Grigory amoleceu de súbito fazendo o coração de Irina parar por um instante, tempo suficiente para que ela o visse cair no sono com uma lágrima rolando pela face e um sorriso nos lábios. A esperança ganhava forma a cada vila não bombardeada que o trem parava e pessoas desembarcavam reencontrando entes queridos na estação. Pousando o rosto no ombro dele, ela se permitiu cochilar também e sonhar com dias melhores adiante. A paz vinha com a luz de um novo tempo, de um novo dia.
domingo, 6 de março de 2022
Esperança
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário