sexta-feira, 15 de abril de 2022

Martini

O dia se desenhava triste, sem nenhuma história que valesse o relato quando ela entrou. Receio que os cabelos negros como a noite sem Lua viram muito creme de pentear enquanto estavam molhados e, agora, o cheiro de abacate se misturava ao odor amargo de cerveja, suor e fumaça de gelo seco da banda de rock psicodélico que tocava, aos berros, alguma música inteligível.

- Boa noite - Ela sorriu com os dentes levemente amarelados, assenti com a cabeça - Por gentileza eu gostaria de um Martini.

- Perfeitamente - Acho que era a primeira vez que faria tal bebida desde o curso, quer dizer, em casa gostava de fazê-la para curtir o amanhecer depois de uma noite de trabalho, por isso fiz tudo num automatismo que faria quem não me conhecesse achar que sou alcoólatra, porém não sou... pelo menos espero que não - Aqui.

- Obrigada - Ela sorriu com os olhos colocando a ponta dos lábios carmins na beira da taça e dando um gole tão curto que faria um conta-gotas parecer um rio - Muito bom, perfeitamente equilibrado, tens talento.

- Obrigada - Meu turno de sorrir com os olhos - É um dos meus drinques preferidos.

Merda. Dei informações demais. Espero que Martini não tenha me ouvido. Quebrei uma das principais regras minhas: não falar muito sobre mim, por mais que eu goste desse emprego a última coisa que quero é um ou uma stalker atrás de mim. Só de lembrar do motivo de meu exílio nesse canto da Metrópole me fez murchar por completo, eu senti isso, meu semblante agora deveria estar entre o triste e o apático.

- Faz um pra você - Martini notou? - Eu pago.

- Adoraria - Respirei fundo retomando o controle e soprando aquela nuvem pesada para longe - Mas se meu chefe me pega bebendo é justa causa.

- Faz sentido - Ela sorriu - Meu ex-marido era rígido com suas funcionárias também, por isso eu entendo.

- Ele tinha um PUB?

- Não não - Ela bebericou mais um gole da bebida enquanto o rosto ruborizou suavemente - Ele tinha uma gráfica, se não saísse perfeito, ou como ele dizia "tão bem impresso que a foto queira sair do papel", era tudo jogado fora... toneladas de material por mês - Martini sorveu um pouco mais do líquido - Foi o que fez ele falir inclusive.

- Eita.

- Exatamente... eita - Um farto gole que secou a taça - Me faz outro? - Martini tomou a azeitona entre os lábios, se eu não estivesse cansada e convicta da minha condição atual, diria que ela estava flertando comigo, servi a segunda rodada - Obrigada. - Enfim, ela me olhou fixamente - E você, qual sua história?

- Eu? - Servi uma cerveja para um homem de cabelo comprido e jeito de motoqueiro - Minha história é a mais simples do mundo: um dia fiz um curso de drinques, fiz o teste aqui e agora estou aqui.

- Entendo... - Ela bebeu um gole - Reservada, gosto disso nas pessoas, mesmo eu não sendo muito admiro em quem consegue - Martini olhou um pouco para a banda, aquele som lhe causava estranheza - Como chama essa banda?

- Poop'n'Corn - Sorri de canto jogando a sobrancelha para o alto, que nome escroto - A segunda sexta-feira do mês sempre tem uma banda novata que toca aqui, semana passada foi um grupo de jazz.

- Ah, então aqui é eclético?

- Você nem imagi... - Controla essa língua - Muito, por isso gosto de trabalhar aqui.

- E, quando não está atendendo aqui, o que costuma fazer?

- Dormir - Sorri, eu ainda estava conseguindo desviar bem da torrente de perguntas de Martini.

- Não sai com amigos? Cinema? Exposição? Show? - Diante da minha negativa ela se pronunciou sobre o balcão - E se eu te convidar pra sair, você toparia?

- Não. - Falei seca, corte rápido, a última coisa que eu queria era conhecer alguém daqui - Cuido de uma tia que está acamada por causa de uma trombose no pé direito - Hora de exercitar a mitomania - E, quando não estou cuidando dela, estou aqui... estamos esperando a fila do hospital público andar.

- Que merda hem - Martini engoliu a história junto da bebida e tomou a azeitona entre os dentes enquanto abria a bolsa e tirou um pequeno cartão - Aqui tem meu telefone, tenho um grande amigo que é dono de um hospital e me deve um favor... já que não vamos sair, pelo menos quero poder te ajudar em alguma coisa.

- Obrigada - Peguei o cartão ignorando o nome, depois pesquisava quem era, só agora me dei conta que as joias que ela usava podiam não ser bijuteria - De coração, obrigada mesmo - Sorri com toda a sinceridade que os anos fazendo teatro me ensinaram a transmitir.

- Antes de ir - Martini fuçava dentro da bolsa - Posso saber seu nome pelo menos?

- Letty - Coloquei a mão próximo demais da hélice? Hora da correção - Não, antes que pergunte, não é um apelido para Letícia, é Letty mesmo, meu pai adorava uns nomes estrangeiros.

- Legal - Martini colocou sobre o balcão uma nota de cem reais - Aqui, uma gorjeta pelo papo e, espero que entre em contato para eu ajudar sua tia - Sorri recolhendo a nota e colocando-a no avental - ... isso se tiver tia né?

Antes de se afastar ela deu uma piscada. Será que não fui tão convincente? Caralho. Que merda. Uma noite que parecia fadada ao tédio de clientes pedindo cerveja, água e refrigerante trouxe alguém que, espero, não seja um problema no futuro. Balancei a cabeça negativamente. O futuro é distante. Não vou me preocupar com ele, afinal, eu não o controlo... Mas, puta merda. Por que agora?