segunda-feira, 6 de julho de 2020

Plata II

Abri os olhos sentindo meu corpo leve. Respirei fundo e... Nada. Não sentia meus pulmões enchendo ou esvaziando. O que está acontecendo? Espera. Eu acho que conheço aqueles dois ali embaixo. Pai? Mãe? Espera. Embaixo? Olhei para o lado e uma lâmpada cegou minha visão por alguns segundos. O que estava acontecendo? Espera... Não vai me dizer que... Não. Não. Não. Eu não posso morrer ainda. 

Vamos descer e voltar pro corpo. Se isso fosse como nos filmes eu entraria e acordaria do coma. Perfeito. De repente esse quarto parecia tão alto. Ou eu que descia devagar? Tentei forçar o corpo. Não tinha jeito de ir mais rápido. Quando estava quase chegando uma barreira me impedia de me tocar. Droga. Pensa. Qual foi a última coisa que eu me lembro? 

- Não adianta tentar lembrar - A voz vinha de um homem sentado próximo da janela, sobretudo, chapéu - É recente, mas com o tempo tudo vai se encaixar...

- Como você sabe? Aliás, quem é você? Como consegue me ver?

- Não é meio óbvio? - Ele sorriu dando um sutil peteleco na aba do chapéu revelando um rosto de um homem, uns quarenta anos, cabelo preto - Te dou três tentativas.

- Um anjo? Demônio? Ceifeiro? Deus? Diabo? 

- Pra quem acabou de chegar nesse plano você fala muito rápido - Do bolso interno do casaco saiu um palito que ele colocou no canto esquerdo da boca - Você errou todas as opções, eu sou apenas um detetive...

- ... Sobrenatural? - interrompi, parecia clichê - Esses trejeitos são meio noir, até um pouco... Caricatos.

- Na verdade - ele tirou o palito com a ponta dos dedos e se aproximou - eu sou uma representação do que você considera um detetive e estou aqui para lhe ajudar a solucionar quem te deixou assim.

- Então eu... Morri?

- Não, ainda não - Ele se aproximou oferecendo a mão - Vamos? Temos muito a fazer... A propósito, meu nome é Gustavo... E eu sei quem você é - Correspondi à mão estendida - agora vamos... Qual a última coisa que se lembra?

- O céu nublado... Acho que era quinta feira - Comecei a forçar a memória enquanto saíamos levitando pela janela - Nas quintas eu gosto de tomar um café perto de casa... - Fechei os olhos sentindo o gosto da bebida quente na garganta - De manhã tinha aula de história do cinema e técnicas cinematográficas, a tarde eu fazia um estágio na cinemateca da província de Buenos Aires e a tarde tomava um café antes de ir para casa... Casa... Moro em um prédio meio velho na alameda próxima ao edifício da Corina Kavagnah, no oitavo andar... Contrafrente, oito zero oito E...

Como se fosse um passe de mágica cá estávamos eu e Gustavo dentro do apartamento. As lembranças vinham como flashes. Havia mais alguém. Cabelo castanho. Não conseguia definir a imagem quando o trinco girou e dois homens entraram. Um deles - Aguilar - dizia que não entendia porque procurar algo afinal era uma tentativa de suicídio que deu errado. O outro - Martin - dizia que era o protocolo e precisavam procurar pistas, que a família dizia que ela não dava nenhum sinal disso.

- Você tem que me ajudar - Me virei para Gustavo que caminhava ao lado dos policiais procurando qualquer pista - O que eu faço?

- Não sei, moça - Ele me olhou - Você não tem fotos? Cartas? Uma anotação que seja...

- Tenho, claro que tenho... - Fechei os olhos tentando me lembrar, pensa, pensa, pensa - Está tudo nublado na minha memória...

- Esse notebook - Martin erguia o computador portátil completamente destruído - Já viu dias melhores...

- O que você diria? - Aguilar se aproximou - Briga? Dia de fúria?

- Os vizinhos relataram alguns gritos, mas nada que fosse anormal... Afinal ela é jovem, bonita... - O policial checava as anotações - Também ouviram som de furadeira...

- ... Que foi o que encontrou esse notebook - O outro policial seguia caminhando a passos lentos, tentando achar alguma pista - Será que foi coisa de droga?

Não vou dizer que sempre fui puritana, mas jamais usaria droga a tal ponto. Só agora havia me dado conta de que eu estava com a mesma roupa que me lembrava. Apalpei os bolsos. Bolso de trás. Do casaco. Da calça. Nem sinal.

- O que procura?

- Meu... - A cabeça doía ao tentar lembrar - ... Me fugiu a palavra, como se ficasse nublado.

- É importante?

- Sinto que é... Só que sempre que eu penso fica tudo nublado.

- Nublado... Pode ser uma pista - Gustavo guiou o palito de um lado para o outro da boca - Nublado é cinza, chuva, nuvens, frio...

- ... O que você disse? - Um estalo - Cinza, chuva...

- Nuvens.

- Puta merda, nuvem, isso! - De repente tudo fez sentido - Eu guardo muita coisa na nuvem... - Ao notar a cara estranha de curiosidade do meu acompanhante completei - ... Na internet, tipo uma pasta guardada em outro lugar.

- E como que faz para ver essa nuvem guardada em outro lugar?

- Precisa do meu...

- ... Aguilar, achei um celular.

- Daquilo.

- Ainda tem bateria? - Aguilar se aproximou do parceiro e vendo que a tela ligava prosseguiu - Tem senha?

- Senha? - Gustavo me olhou enquanto eu tentava lembrar - Como abre tal nuvem?

- A minha senha é onde moro... Sempre usei isso, assim nunca esquecia... Tem como eu falar com eles? Digo, sussurrar tipo nos filmes...

- Só se sua vontade for forte o suficiente...

- Não custa tentar...

Me aproximei de Martin e tentava falar a senha. Ele, ao contrário do que eu queria, evitava tentar alguma forma de de desbloqueio com medo de travar o aparelho inteiro. Aguilar vasculhava o quarto enquanto o policial com meu telefone se aproximou da porta. Parando diante do letreiro com o número do apartamento. A plenos pulmões gritei que essa era a senha. De repente tudo escureceu e ficou branco logo em seguida.

- Meu deus -conhecia aquela voz - ela acordou!

- Beatriz - Esse é o nome da minha mãe - Ela acordou!

- O que... - De repente todas as partes do corpo deram sinal ao mesmo tempo me trazendo desconforto - ... Aconteceu?

- Não se preocupa com isso agora filha... Você voltou para a gente e é isso que importa.

Alguns dias se passaram e já me sentia mais forte. Foi quando uma psicóloga veio me falar da morte dos meus amigos, todos envenenados, chorei lembrando de tudo até a quarta feira. Depois disso era nublado. Uma semana se passou e dois policiais vieram falar comigo, preencher lacunas. Como se fosse um choque todas as lembranças daquela quinta feira veio de uma vez só.

Depois da aula passei a tarde na cinemateca. Um grupo de estudantes queria saber de filmes gravados em Buenos Aires no último ano. Acompanhei eles até o acervo. Ao fim do meu expediente passei no café onde Camila trabalhava. Ela não aparecia faziam dois dias, voltei pra casa e ela estava me esperando, dizia que agora ninguém ia impedir nossa felicidade. Falando agora lembro de vários ataques de ciúme dela com meus amigos. Já tínhamos brigado muito sobre isso e ela sempre prometia que se controlaria mais dali pra frente. 

Só que naquela quinta feira nada disso aconteceu. Sob pretexto de uma festa surpresa atraiu todos os meus amigos para o apartamento e deu gelatina com veneno. Vi a cena dos corpos empilhados na banheira. Não sei como ainda tive sangue frio e tirei inúmeras fotos daquilo. Deixei o celular gravando a conversa que teríamos, mas não tive tempo. No áudio recuperado pude ouvir o exato momento em que ela me apagou e ficou balbuciando que tudo poderia ser melhor, por que eu tive que estragar tudo? Depois o som da furadeira, do armário abrindo, fechando, zíper de malas, a porta da sacada e o som do meu corpo sendo arrastado seguido da porta principal abrindo, fechando e sendo trancada.

De acordo com a investigação eu só não morri porque caí em cima de um jipe com teto de lona. Fraturei seis costelas, perfurei o pulmão, quebrei as duas pernas, o quadril, o braço direito além de um traumatismos cranianos. Fiquei seis meses no hospital até me recuperar bem.

Graças aos meus registros e as fotos que eu guardava na nuvem conseguiram localiza-la já próxima da fronteira com o Chile. As informações ne foram trazidas pelo prestativo policial Martin.

- Não sei de vai acreditar... - Ele me confidenciava com os faces ruborizando sutilmente - Mas quando achei seu celular algo me disse a senha e consegui achar uma foto sua com ela e o carro... Dali foi um pulo até a captura dela.

- E se eu falar que eu estava lá e te ajudei?

- Não vou duvidar...

- ... só que eu não estava sozinha - Minha vez de sentir meu rosto arder em vergonha - Tinha um detetive, com chapéu, sobretudo e sempre mascando um palito.

- Um... Palito? - Martin pegou a carteira abrindo e me mostrando uma fotografia - Era ele?

- C-como você... - Senti minha pressão baixar subitamente, retomei o controle do meu corpo - Q-quem é ele?

- Meu avô, foi policial nos anos de 1930 e 1940... - O sorriso em meus lábios misturava-se às lágrimas - Ele faleceu naquele hospital, a viatura dele caiu no rio, quando trouxeram levaram para o hospital ele aguentou mais alguns dias e não resistiu... Mas a busca dele por ajudar as pessoas foi algo que me inspirou a entrar para a polícia sabe?

- Vai parecer doido... mas... Qual era o nome dele?

- Do meu avô? - Martin deu uma olhada na foto, assenti com a cabeça - Ele se chamava... Gustavo.