sábado, 29 de setembro de 2018

Meio

Helena estava com a cabeça encostada no vidro da janela do ônibus, ainda tinha doze horas de viagem, nos fones tocava alguma música qualquer, ela não se importava. Só queria chegar logo. O sol já tinha se posto quando ela sentiu a vibração do veículo. Era diferente. A velocidade em que as árvores passavam foi diminuindo gradativamente. "Não fode" pensou murmurando.

Por sorte, destino ou qualquer coisa assim estavam muito próximos de uma cidade. De lá o motorista contatou a empresa. Outro ônibus só de manhã. Teriam hotel e refeições pagas. Hotel honesto. Todos os quartos com tv, internet, banheiro. Para Helena estava ótimo, quantas noites ela dormiu no relento? Em bancos de praça? Em boleias de caminhões? Pensar no último não foi uma boa ideia, lhe voltaram pensamentos de coisas que fez e, agora, voltando, se arrependia amargamente. Deixou a mochila sobre a cama e foi tomar um banho. Se viu no espelho. 

(TW: TEPT) Não adiantava quantos banhos tomasse. Quantos litros de perfume usasse. Quais cremes passasse. Não conseguia tirar aquele cheiro que impregnou na sua mente. Quis quebrar o espelho com um soco, tamanha a raiva que sentia de si mesma. Puxou os cabelos como se quisesse arrancá-los pela raíz levando com eles os pensamentos ruins. As lembranças ruins. Os momentos ruins. Encostou na parede e foi escorregando até acabar sentada no chão frio do banheiro. Não. Fechou os olhos, respirou fundo. Sorriu de canto.

Pegou na mochila a carteira. Deviam haver farmácias abertas. Faria algo que sempre fez em casa. Casa. Esse termo ainda remetia a algo não tão bom e que, o tempo na estrada, tinha ensinado que não era tão importante. Mas era. Na volta jantou. Caprichou na última refeição que faria. Delicioso. Ouviu um casal, colegas de ônibus, dizer que perderiam um casamento por causa disso. Complicado, mas é sempre melhor lidar com a possibilidade de que vai dar merda do que fazer tudo em cima da hora. O homem não gostou da sua resposta, mas a mulher viu verdade e logo os dois de convenceram de que Helena estava certa.

Voltou ao quarto, ligou a TV, precisava de barulho pro que ia fazer. Jornal, novela, programa religioso, jornal, mais novela, canal passando clipes. Achou estranho mas era ali que ia ficar. Da mochila saiu uma tesoura que tinha roubado de um dos diversos bicos que tinha feito de cabelereira para pagar a ida até a próxima cidade. Voltou ao banheiro. Aquele rosto refletido ainda lhe questionava, lhe cobrava diversas atitudes, lhe dizia que tinha errado e muito. Não discordava daquele rosto.

Respirou fundo mais uma vez. Passou a tesoura. Uma, duas, três, vinte, trinta vezes. Logo a pia estava cheia de cabelo. Passou uma escova para tirar os fios soltos e aplicou a tintura que havia comprado. Fez todos os procedimentos da embalagem, depois tomou um banho. Passou a mão no espelho para desembaçá-lo. Não acreditou. Aquela era ela. A versão dela que ela tanto lutou para soterrar. Era a ver da Helena antes dos surtos, das viagens, dos crimes voltar. Aquela que sempre quis de volta. Boa hora para ela voltar. Bem vinda.