domingo, 3 de março de 2019

Despertar

Janaína não se lembrava onde havia largado os fones de ouvido, a última lembrança era a cama, caminhou a passos rápidos até o quarto e, enquanto girava a maçaneta sem cerimônia alguma lembrou-se que não morava mais sozinha, mas a ordem já havia sido dada para o cérebro, porém outra ordem sobre-escreveu a primeira: entrar e fechar a porta em seguida. 

As cortinas dum pano carmim filtravam a luz do sol e deixavam o ambiente em tons que iam do bordô até o rosa, que era o que iluminava o rosto de Helena que dormia com um sorriso quase enigmático. De repente a busca pelos fones de ouvido se tornou tão pequena diante daquela menina, daquela mulher dormindo ali, tão serena, tão doce... tomando o máximo de cuidado Janaína tirou do bolso da saia o telefone e tirou uma foto que não refletiu nem um décimo da beleza da cena. 

Sem saber porque se encostou na porta fechada do quarto e sentou no chão tentando imaginar com o que a amiga sonhava. As lembranças que deviam se passar pela cabeça dela, as dores, os traumas, as neuras... sem entender muito bem porque, quando deu por si novamente Janaína estava com os olhos rasos em lágrimas vendo Helena dormir como, por certo, a muito não dormia. Se lembrou daquela noite, para variar estava tendo o mesmo pesadelo do acidente, do carro, das cobranças, das vozes, de como gritou pra que se calassem e de acordar com o interfone. O porteiro da madrugada a chamava com urgência.

Em um piscar mais demorado toda aquela cena veio como um flash. Largou o interfone no ar e saiu porta afora de camisola, descalça entrou no elevador. Térreo. Desceu. Ao chegar o rapaz havia acomodado Helena em um sofá que havia na portaria, os olhos dela fechados, uma baba viscosa corria pelo canto da boca da moça. Por um instinto Janaína foi checar a testa. Ela estava fria, sem saber exatamente porque checou o pulso, aquelas milhares de horas assistindo seriados teriam de valer alguma coisa. Parecia fraco. Quando questionado o porteiro se limitou a dizer que um carro prata parou e jogou ela pra fora. Sentiu ódio por não conseguir rastrear o tal carro e poder socar a cara de todos aqueles desgraçados. Sua respiração ficou pesada um instante, trincou os dentes. Helena se moveu um pouco sem despertar e dissipou toda aquela raiva de Janaína. 

Os dias que se seguiram foram tão terríveis quanto aquela noite. Os médicos diziam não poder garantir se ela voltaria e, muito menos, se teria alguma sequela ou coisa do tipo. Foi só no segundo dia em que Helena não acordava que alguém lhe disse que era uma overdose. Janaína se sentiu terrível naquele momento. Como pode deixar que sua partner in crime cair tanto assim? E como não notou os sinais? Por sorte as enfermeiras foram com a cara dela e a deixavam dormir no mesmo quarto, em uma poltrona. Enquanto via os sinais vitais claudicantes Janaína abraçava os joelhos e chorava. Nada mais fazia sentido. Quase chegou a prometer para algum santo da capela do hospital qualquer coisa para que a amiga voltasse. 

Ela não comia, não bebia, só ia ao banheiro. Uma das enfermeiras lhe disse que tinha que se cuidar para quando Helena acordasse a visse bem. Foi só no terceiro dia que voltou a cuidar de si, ainda que minimamente e foi, no quarto dia, que Helena abriu os olhos e disse o quanto odiava ver Janaína chorar, ainda mais sabendo que ela se achava a causa. 

Abriu os olhos despertando daquela lembrança. Deu uma rápida olhada para cima e agradeceu aos céus por ter tido essa oportunidade de fazer mais por alguém e agradeceu de novo por esse alguém ser Helena. Nunca foi de religião nenhuma, mas, naquele momento, agradeceu a deus por tudo até aqui. A paz que sentiu dentro de si lhe preencheu como nunca havia se sentido completa e, sem saber bem porque, deixou que as lágrimas rolassem.

- Odeio te ver chorar - Helena estava com os dois olhos abertos, porém não havia movido um músculo além dos que controlam as pálpebras - Me sinto errada... de novo.

- Você não é errada - Janaína limpou as lágrimas - Eu estava chorando de alegria.

- Alegria? - Helena arqueou uma das sobrancelhas - Conte-me mais.

- Ah... - Janaína suspirou com um sorriso nos lábios - ... te ver dormindo assim é tão... lindo sabe? Te ver bem faz eu me sentir útil...

- Lá vem você com isso - Helena deu um pulo pro lado - Vem cá que vou mostrar sua utilidade.

- Assim, no meio do dia? 

- Problems, where? - Helena notou que Janaína estranhou a proposta - Vai lá, fecha a casa, eu te espero...

Ainda um pouco contrariada Janaína levantou do chão e saiu do quarto deixando a porta aberta. Sabia que, quando Helena propunha algo assim, ela não podia negar, até porque ela sabia que ela também precisava disso. Era biologicamente necessário. Trancou a porta, colocou o cadeado na única janela que havia aberto. Na volta para o quarto pegou uma garrafa de água, afinal não precisar sair do cômodo naquele momento tão delas era crucial. Voltou ao quarto deixando a porta só encostada, afinal podiam precisar sair correndo para o banheiro.

- Pronto - Janaína deixou a garrafa do lado da cama pedindo espaço para se deitar ao lado de Helena - Enfim sós.

- Oba! - Helena abraçou Janaína que abraçou de volta roubando um selinho - Gostei disso.

E, sem se preocupar com mais nada ao seu redor, como se toda a criação houvesse parado para que as duas pudessem vivenciar aquele momento em sua plenitude não se ouviu, naquele resto de dia, nenhuma buzina, nenhuma sirene, nenhum carro com som alto, nenhuma voz vendendo algo na rua. Os únicos sons que se ouviam naquele instaste raro eram de alguns carros ao longe, de pássaros no telhado e da respiração de Helena e Janaína se acalmando aos poucos até que, enfim dissiparem os pensamentos ruins com uma das atividades mais básicas de todo ser vivo. Com um sorriso fino ambas se permitiram dormir no meio de uma tarde de terça-feira.

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