domingo, 5 de maio de 2019

Mar Redondo


Antonela ainda se lembrava do dia que chegou aqui com o trem. Já faziam uns bons vinte anos. Tanta coisa havia mudado não só em sua vida como no fato do trem não passar mais por aqui. Quer dizer, o trem de carga ainda chegava no porto, o de passageiros, no entanto, ficava na cidade anterior, igualmente litorânea, mas não tão bela quanto essa.

Convenhamos que ela se apaixonou pela arquitetura, depois com o acesso fácil às praias, à capital, depois vieram tantas outras paixões que ela já não sabia mais o que ainda lhe deixava ali, num amanhecer nebuloso de maio, vendo os barcos de passageiros indo para a ilha. Franziu a testa um instante vendo sua paixão mais recente vindo na sua direção.

O mar havia levado o coração do pai da pequena que corria com um cata-ventos a chamando de mãe. Faziam poucos minutos que Antonela havia deixado o esposo no porto, trabalhava embarcado, o próximo porto era no Uruguai e depois seguia para a China, ida e volta davam quase quarenta dias longe dele. Claro que a tecnologia aplacava um pouco da saudade e a presença de Beatriz, que pareceu entender a introspeção da mãe pois ao chegar ao lado dela se calou, facilitava os dias.

Apesar do bom salário dele ela não se limitava a dar uma de Penélope esperando seu Odisseu e, como boa guerreira que foi desde o dia que desceu daquele trem, lecionava durante o dia em uma escola perto dos trilhos. Enquanto seus colegas reclamavam da constante de locomotivas e da falta de planejamento do Estado em construir uma escola ali, ela não se importava tanto, tinha fascinação por aquelas máquinas mágicas que a trouxeram para cá e, a cada intervalo nas aulas lhe rememorava o motivo dela estar ali e de ali permanecer.

Com a ponta dos dedos calculou quanto tinha no bolso. Sempre andava com os documentos de Beatriz consigo pois não era raro duvidar da maternidade de Antonela, afinal havia puxado mais o pai, neto de escravos do que ela, bisneta de italianos. Num impulso perguntou do próximo barco pra ilha, dez minutos. Comprou a passagem, hoje o dia era de rever uma paixão mais antiga, a paixão que a trouxe aqui pra começo de conversa: o mar.

Um comentário:

Ivana disse...

Talvez pareça redundante devido a posição que ocupo, ams que texto bonito. Adoro esta palavra, como adoro o autor destas crônicas e por conseguinte as cônicas....
Texto leve, bem escrito, onde as informações vão sendo encadeadas de forma sutil engrandecendo o conteúdo e tornando-o prazeroso. Não é dificil viajar até a beira daquele rio e pelos olhos da personagem ver os barquinhos as ilhas do outro lado da margem, que mais parecem terra firme, não são ilhas...
A literatura dever servir a isso, viajar... e estas crônicas sempre conseguem fazer isso comigo.