domingo, 10 de março de 2019

Salto de Fé

Faziam quase dois meses desde que Janaína e sua melhor cúmplice haviam se reencontrado por um fruto imenso daquela grande árvore do acaso. Ainda recebia uma ou outra mensagem de amigo da faculdade que a convidava para sair. Bares. Boates. Lanchonetes. Motéis... não era mais algo que ela queria. Ainda que nunca tivesse vivido tudo aquilo com a mesma intensidade de seus colegas. Ouviu a porta atrás de si abrir e só então se deu conta de que estava na varanda da casa que havia arranjado depois da peripécia de sua amiga.


- Oi... - Helena parou ao lado da amiga - ... um dólar em troca de saber o que se passa nessa sua cabeça.


- Você não tem um dólar - Janaína sorriu olhando para Helena que já não tinha mais a aparência cadavérica daquela malfadada noite - Como está?

- Me sentindo um lixo - Helena tirou o maço de cigarros do bolso e acendeu dando uma tragada forte soltando a fumaça na direção oposta da amiga - Mas não chega a ser uma novidade.

- Então somos duas... - Janaína fez careta ao ver o cigarro - Espero que esse seja o último.

- De hoje sim - Helena bateu a cinza no vaso de salsinha - E único... me propus a fumar um por dia até não querer mais.

- Bom... assim é bom.

- Mas e você?

- Que tem eu?

- Largou tudo pra cuidar de uma desmiolada como eu - Helena soltou a fumaça admirando o desenho no ar se dissipando - E aquela moça maluca lá... Érika, não é?

- O que tem ela?

- Vocês tavam de caso quando eu apareci...

- Caso? - Janaína riu - A gente se conheceu no bate-papo, marcamos um dia e depois disso a gente se viu uma vez numa lanchonete aqui perto, o objetivo dela era só o motel.

- Que vadia - Helena apertou a bituca na palma da mão - Vou tomar banho.



Helena havia definido tão bem que Janaína ficou sem palavras sentindo os auspícios da noite. Esse lado da cidade parecia uma pequena cidade do interior, poucos prédios, comércio onde as pessoas se conheciam pelo nome. Apesar de ainda estar na mesma Metrópole aqui podia ouvir grilos, cigarras... quase sentiu saudade de quando morava no sul. O celular no seu bolso tocou. No visor o nome de Érika se escreveu. Ponderou ignorar, mas hoje resolveria isso, atendeu tomando a dianteira.

- Alô...

- Hey, Janaína - Érika parecia alterada, bêbada talvez - Tudo bem?

- Não muito - Suspirou - Mas já-já melhora.

- Melhora sim - o som ambiente quase tornou a ligação insuportável por um instante, mas o silêncio imperou - Sobretudo se a gente sair pra tomar alguma coisa... que acha?

- Não ando muito afim de sair, Érika...

- Eita - A voz dela perdeu um pouco do tom alcoolizado - E por que?

- Por que eu ando ocupada...

- Ainda de babá? - Ela estava alcoolizada - Digo...

- Babá? - Janaína sentiu o sangue subir - Eu estou ajudando uma amiga, uma irmã a superar o vício em drogas, depressão e tudo mais e você diz que eu sou babá?

- Janaína - Érika sentiu que falou besteira, era a confirmação daquela máxima que o álcool entra e a verdade sai - Me desculpa, eu...

- Não desculpo não - A respiração de Janaína acelerou - Sabe por que?

- Por que?

- Porque eu não abandono as pessoas por uma noitada, uma tara, um desejo sexual qualquer - O tom era extremamente duro - Esses dias passei pelo seu bairro e vi um cartaz de desaparecida com a sua foto - Janaína caminhou para fora da varanda, não que Helena a ouvisse aos berros - Você foge de casa, deixa marido e dois filhos em casa pra que? Viver umas fantasias sexuais? Pelo menos tivesse a coragem de dizer que ia embora mas, pelo que assuntei, você meteu o pé no meio da noite, me diz, ta valendo a pena?

- Eu...

- Calaboca que eu não terminei - Janaína resolveu jogar toda a frustração que tinha em Érika - No fim você é só uma covarde que foge e fica procurando motivo pra transar ou experimentar algo insano qualquer - Hora do gran finale - Eu te respeitava quando você disse que era CamGirl, sério, eu me coloquei no teu papel e entendi que você precisou se virar pra sustentar sua família e, por mais incrível que pareça, eu aceitei que a gente se encontrasse porque eu também queria espairecer e até aceitava que poderia ter acabado no motel... buscar uma diversão assim até vai porque sei que ninguém é perfeito agora fugir na calada da noite deixando filhos? Caralho, você é mais egoísta do que eu imaginava - Janaína sentia a mão tremer, o coração acelerado, o silêncio perdurou por dois pares de segundos, em seguida ela suspirou -  na boa, volta pra sua família e vai se tratar, porque o que você tem não é safadeza ou desejos diferenciados... é doença mental.

O silêncio imperou. Janaína havia pegado pesado, porém tudo o que falou era o que remoía faziam dias toda vez que pensava em Érika. Ter família, ter filhos pode não ser muito compatível com uma vida oculta, mas não justificava abandonar um para dedicar-se apenas ao outro. A respiração pesada foi se aliviando e do outro lado da linha se ouviu um nariz sendo assoado.

- V-você t-tem razão - um ataque de lucidez? - E-eu... o quê eu tô fazendo?

- Sinceramente? - O tom seguia áspero - Eu não faço a menor ideia.

- M-me leva pra casa?

- Desculpa, Érika... mas não vai rolar - Janaína soltou um profundo suspiro - Preciso ficar de babá.

- Eu... 

Apesar do ódio e da vontade de abandonar, Janaína jamais deixaria uma pessoa na mão, mesmo que fosse uma tremenda filha da puta. Tinha horas que ela odiava esse gênio herdado de seus pais, mas era isso que a tornava a única pessoa que Helena confiava.

- Me passa o endereço de onde você tá - Janaína olhou a lua sair de trás de uma nuvem - E o endereço da sua casa, vou mandar um carro... depois disso não me procura mais até resolver sua vida... cara, eu fucei a rede social do seu marido e você tem uma família maravilhosa, aproveita isso e agradece a deus pela dádiva que você recebeu.

- E-eu... - o choro era extremamente audível do outro lado - Obrigada.

- Tudo bem, você tem cinco minutos para mandar os endereços, se não mandar eu mando descobrir onde você está e mando seu marido ir te buscar.

- Não precisa - Um dos endereços acendeu a tela do celular de Janaína - Eu... vou arrumar isso... não sei como, mas vou dar um jeito.

- Vai sim, você é capaz. 

- Tomara que seja mesmo... - Érika digitou e enviou o outro endereço - Mais uma vez obrigada.

- Tudo bem, agora resolve tudo isso - Janaína suspirou - Tchau.

- T-tchau.

E o silêncio se fez com o fim da ligação. Janaína enviou um carro e monitorou todo o trajeto, era incrível como ninguém conseguia rastrear Érika tão perto de casa, meia dúzia de bairros distante. Quando a corrida chegou ao destino julgou sua missão cumprida, agora era com Érika. Por dois segundos pensou que Helena havia feito basicamente o mesmo de fugir de casa... porém sem deixar marido e dois filhos.

- Difícil ser super-herói em tempo integral hem - Helena estava sentada no degrau entre a varanda e o pequeno pátio - Mas você tem potencial.

- Você acha? - Janaína se virou desligando a tela do aparelho - Aliás, desde quando você está aqui?

- Desde a parte do "eu sou babá" - Helena olhou para a lua, sorriu finamente retirando a toalha dos cabelos - Eu sou um fardo muito pesado pra você, Jana?

- Até que não... - Janaína se sentou ao lado da amiga - ... você é levezinha.

- Eu tô falando sério, Janaína Barcelos.

- Não é, Helena Vicent Stewart, não mesmo.

- Por isso que eu te amo - Helena virou o olhar para a amiga ao seu lado, ao passo que Janaína fez o mesmo. - Você mente duma forma que eu acabo acreditando.

- Mas é a verdade, sua besta - Janaína se levantou oferecendo a mão - Vem, vamos bolar um jantar.

- ... ou pedir uma pizza.

- Oh Hell, a vida não é só pizza - Helena se levantou seguindo a amiga para dentro - Tem macarrão também, você faz o molho enquanto eu tomo banho.

- Feito.

- Mas antes uma coisa... - Janaína parou na porta entre a cozinha e o corredor que terminava no banheiro - ... é bem sério e eu preciso te dizer.

- Que foi?

- Eu te amo, Helena.

- Eu também te amo, Janaína... - Helena sorriu se sentindo completa, não precisava de muito mais do que tinha agora - ... agora vai tomar banho pra tirar essa zica da Érika, anda, xô.

- Nossa, mó quebra clima.

Ambas riram enquanto Janaína ligava o chuveiro sentia o cheiro de cebola refogando. Era bom ver Helena nesse momentos. Que assim conserve até o momento que fosse avisar para a família dela que ela estava bem e que eles eram o problema. Se sentiu idiota por mandar uma pessoa voltar para o seio familiar enquanto mantinha outra afastada. No fim as duas podiam ter inúmeros problemas... o que diferenciava Érika de Helena? Janaína apenas conhecia a história de uma mais a fundo do que a outra. Talvez tivesse feito merda. Quando sentiu uma nuvem estacionar sobre sua cabeça duas batidas na porta do banheiro a despertaram, ela anunciava que o molho estava pronto e alguém tinha que fazer o macarrão. Janaína sorriu, a vida era tomar decisões e não se arrepender. Ela tinha tomado a dela e dito o que achava certo para Érika, se ela absorveu tudo errado, o problema não era mais dela. Fechou o chuveiro colocando um pijama e enrolando os cabelos em um coque. A vida era isso e agora tinha de cozinhar macarrão.

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