sábado, 7 de março de 2020

Ruptura II*

Talvez o pior luto seja o luto das pessoas vivas. Aquele que você sabe onde as pessoas estão, onde elas vão, ainda tem uma certa noção da rotina delas, às vezes até encontra com elas em algum corredor, rua, esquina em comum, vê num reflexo. Assim foram aqueles dias antes da minha explosão, aquele maldito momento em que eu estava com a porcaria de uma faca na mão e a visão turvou.

Agora não vale a pena tentar relativizar, achar uma desculpa mirabolante. Tive um ápice de fúria. Não tem essa de possessão demoníaca ou qualquer coisa do tipo. Fui apenas eu, Janaína Barcelos, sem controle da minha raiva. Nos dias que antecederam aquela situação eu tive inúmeros momentos em que eu me desprendi de meus pais, eu os via como estranhos. Por dentro sabia que eram meus pais, mas lá no fundo eu sabia que eram dois estranhos. Parece cruel pensar assim, mas era como eu me sentia. E na época eu sabia que era completamente errado pensar nisso daquela forma.

Aquele inverno foi comprido. Depois do incidente com a faca eu tentei efetivamente morrer também. Na verdade eu já estava morta, faltava tomar consciência disso. Porém quando tentei resolver a situação eu não consegui. Na real não deixaram. Quando dei por mim estava em um lugar bonito, árvores, o som de um riacho... era bom estar ali apesar do que acontecia quando ninguém olhava. Uma das meninas que estava lá mais tempo dizia que alguns monitores davam em cima de algumas internas. Não duvido, mas aquela mesma menina dizia que estava sendo perseguida por alienígenas. Também não há de se duvidar que uma menina chamada Clarisse tenha tanto a oferecer.

Desculpa. De novo me desviei da história principal, às vezes tenho desses devaneios e acabo esquecendo o que estava falando... ah sim, do meu luto. Depois que saí daqueles dias em repouso tudo pareceu tão alheio, tão distante. Tanto faz o fato de eu estar chapada de calmantes. Hoje sei que pode ter sido uma despersonalização, uma forma que minha mente encontrou para que eu pudesse suportar toda aquela situação. E confesso que era uma sensação gostosa no começo, eu me via de cima, como se estivesse vendo outra pessoa. Aliás, esquizofrenia ou não, era outra pessoa. Ou melhor, outra criatura. Tsuki, minha raposa interna quem controlou cada ação naqueles dias.

Foi só naquele dia que viajei que ela me deixou retomar o controle. Era como se ela pudesse prever o que viria... você é vidente, Tsuki? Agora você se cala e finge dormir. Muito bom, ótima atriz. Kitsune. Cheguei, encontrei com meus pais, jantamos no shopping de rico. Na época eu ainda procurava alguma coisa para direcionar a vida, alguma coleção que pudesse ocupar minha cabeça, definir um hobby podia me ajudar a pensar em uma futura carreira. Olhando hoje parece tão idiota esse pensamento. Meu pai tinha um carro bom. Confiável. Espaçoso. Naquela época eu não parava para pensar se era compatível com a renda que ele tinha. Penso que ele tinha seus rolos e suas formas não-ortodoxas de ganhar algum extra, afinal, trabalhando com despacho aduaneiro sempre é possível liberar uma carga antes da hora, basta carimbar no lugar certo.

No meio do caminho uma chuva torrencial despencou. Em nenhum momento cogitamos parar e esperar aquela tempestade passar. Muitos carros pela estrada fizeram isso, dava para ver os pisca-alerta no acostamento. A entrada dos postos de gasolina tinham até ônibus estacionados. Alguns poucos carros ainda se arriscavam por aquele asfalto molhado, foi quando uma imperfeição qualquer da estrada fez ter um acumulo de água justamente na entrada de uma curva. O volante não virou. O carro foi reto. Lembro de chacoalhar primeiro para trás quando saltamos a canaleta na lateral da estrada e depois o baque violento ao achar uma parede de pedras. Bati a testa no encosto do banco de meu pai. O rádio tocou mais uma nota e parou. Merda, não consigo lembrar a música que tocava, lembro que era boa. Depois disso apenas o som da chuva no teto do carro. Uma paz. Uma tranquilidade que me fez crer que eu tinha morrido. Mas é aquela coisa, esse tipo de sensação nunca dura muito, logo voltei pra dentro do carro. 

Os dois airbags da frente fizeram sua função. Mas o impacto foi grande demais. Lembro da voz serena deles dizendo que tudo ia ficar bem. Meu pai dizendo que dali alguns dias íamos andar de patins na praia. Minha mãe dizendo que tudo bem eu fazer faculdade que não dava dinheiro no começo, eles podiam me dar o suporte que eu precisasse para dar os primeiros passos sozinha. Aquela paz. As vozes eram serenas. Conversamos muito. Colocamos todas as desavenças em ordem. As arestas aparadas. Não sei precisar quanto tempo ficamos ali. Sei que era agradável, apesar da chuva ter engrossado consideravelmente não chovia dentro do carro. Foi quando vi uma sirene piscando em vermelho e branco atrás de nós. A noite começava a cair e a chuva não cessava. Era o resgate. Um bombeiro, acho que no uniforme estava escrito sargento Bastos ou algo assim, não me recordo muito bem. Torci o pé ao sair do carro, mas estava tudo bem.

No dia seguinte acordei no hospital. Três médicos estavam próximos da minha cama. Falaram que meus pais não sobreviveram. Foi um baque maior que o choque com a pedra. Como? Estávamos conversando até acharem a gente. Na semana seguinte o laudo da perícia dizia que, mesmo com o airbag, o impacto foi forte demais e eles morreram na hora. Como? Conversamos por um tempão. Foi você, Tsuki? Não, claro que não. Ela não seria capaz de brincar com algo tão sério. Ou seria? O foda que, por dentro eu sabia que eles tinham morrido no impacto. Vi as fotos do carro. Ficou parecendo aqueles carrinhos do Japão, super compactos. Mesmo onde eu fiquei deformou o suficiente para que eu tivesse algum ferimento. As manchas roxas na perna, braços e peito deviam ser isso.

Toda aquela conversa foi uma elegia. Uma forma que minha mente encontrou de viver aquele luto. Foi ali que senti que não mais pertencia àquela região, àquela família. Aquele lugar se tornou algo triste. Mas, mesmo assim, não chorei tudo aquilo. Os planos. Os projetos borbulharam dentro da minha cabeça. Se era por falta de sinal aqui estava um bem assinalado, gigantesco, um farol. Foi uma embarque em um ônibus, mala com roupas e umas lembranças e uma mochila com miudeza, uma voz quase robótica anunciando o embarque para a Metrópole. Aspirei o ar daquela terra uma última vez e embarquei. Foi ali que tive a minha primeira e, até agora, maior ruptura.



* Por Janaína Barcelos

Nenhum comentário: