sábado, 14 de março de 2020

Ganido

Não há um momento exato em que surgi, talvez sempre estive aqui dentro adormecida, apenas esperando a hora certa para despertar e cuidar de você, menina. Eu sei que não gostas que te chamem assim, mas é como lhe vejo.

Posso não ter a memória exata de quando cheguei, mas lembro-me de quando tomei o controle a primeira vez, tinhas algo na mão, um brilho, um movimento rápido que meus olhos recém-abertos não acompanharam, lembro de ver pele, chão, sangue... sangue? Foi quando assumi. 

Tomei sua forma enquanto você se reconstruía. Calma. Calma. Deixe tudo comigo. Você não respondeu, apenas deu de ombros. Quando dei por mim estávamos em um local bonito. Árvores. Paredes limpas. Som de pássaros. Foram nesses dias que me batizou, lembra? 

Você e sua imensa curiosidade sobre mitologia oriental me deu mais que um nome, me deu uma forma. É curioso pensar nisso hoje. Até aquele momento eu não tinha uma forma, não que eu fosse uma ameba, longe disso, eu apenas vivia tão oculta nas sombras que nunca atentei para qual era minha forma ou quais eram minhas extremidades.

Foi assim que como se uma luz se ascendesse no meu cômodo dentro de ti... espera. Cômodo? De acordo com a psicanálise eu, muito provavelmente, sou uma parte da sua consciência, do seu id. Sendo assim eu sou seu inconsciente. Sou responsável por cada atitude sem pensar. Tresloucada. Tsc. Eu sei que gosta de assumir suas atitudes, menina, mas tens que admitir que já usou o meu mostrar de dentes para explicar diversas atitudes suas, até mesmo com a menina-loba.

Falar nela me traz uma paz confusa. Acho que não convivemos na natureza. Se bem que em regiões com neve... É, hoje não é o momento de falar disso. Ainda mais pelo fato de não sermos seres biológicos... quer dizer, aquela criatura tem um gosto bom. Forma estranha de me expressar, mas é assim que é, aquela loba tem um gosto diferente de tudo que já provei. Provei não, provamos.

A imensa verdade, menina, é que temos o mesmo péssimo costume de tergiversar e nos perdermos no que dizíamos. Pensar que comecei a falar de minha origem e acabei indo parar nela. De veras estranho não é mesmo? Eu sou grata por você, sei que também és por mim. Temos uma simbiose perigosa aqui.

Perigosa sim. Pois quando lhe surgem momentos ruins eu assumo, me recompensa com suas caças. O pagamento é justo, eu sei, mas te deixo com pouco do que sentir, sobretudo nas suas caçadas noite a dentro. Em contrapartida te deixo sentir cada mínimo prazer com a loba. O perigo está justamente nesse instante, eu sei que não devo, mas acabo te deixando ir com ela, torço para que nunca aconteça nada de ruim e... enfim.

Sim, minha menina, eu torço por você. Sempre torci e nunca escondi isso de ninguém. Por isso assumi o controle várias vezes, para que pudesse se remontar, se reconstruir. Aparentemente eu soube guiar a gente até um momento melhor, não é mesmo?

Ah sim, falava sobre minha origem e como me nomeaste. Sua fascinação pelo oriente até te fez comprar uma casa no bairro mais nipônico da Metrópole. Pena que não pudemos ficar lá muito tempo. Céus, sim. Foco. Naquela noite na praia, depois dos ocorridos na estrada, eu me lembro da Lua brotando no mar, foi ali que te segurei o mais firme que pude e que, em homenagem à sua paixão por ela passou a me chamar de Tsuki. Lua em japonês. Confesso que não entendi bem como uma menina com os cabelos dourados como o por-de-sol pode ter tamanha adoração por algo tão ligado com as trevas. 

Durante as caçadas na Metrópole entendi.

Gosto de nossas conversas, menina. Tudo bem, você odeia que eu te chame assim, como preferes? Janaína? Posso lhe chamar assim se quiseres, mesmo que para mim siga sempre sendo a minha menina. Vou me calar. A loba chegou. Chegou sim. Sinto seu cheiro de longe. Como é que se diz mesmo? Itadakimassu.

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