sábado, 25 de agosto de 2018

Volta

Fazia quase um ano que ela havia deixado tudo para trás. Família. Amigos. Janaína. Pensar em Janaína ainda era a única coisa que lhe balançava o coração e lhe fazia parar no meio da estrada, três horas da manhã, uma Lua cheia fazia parecer dia. A carona que tinha conseguido tinha tentado o "algo mais", pulou fora, caiu no mato, se embrenhou e o agressor foi embora. Estava ficando experiente nessas fugas.

Suspirou olhando a Lua. Será que estava mais perto ou mais longe do que havia saído de casa pra buscar? Na mochila o documento de Clara estava fácil de achar, no fundo falso sua real identidade. Real. Identidade. Nesse local ermo. Essa hora da manhã. Não encontraria carona. A internet do telefone não funcionava, sinal que estava longe demais de qualquer área minimamente civilizada. Sem parar de caminhar seguia em frente. Uma hora sempre tem uma cidade. Não seria a primeira vez que teria de caminhar tanto. Talvez a primeira vez essa hora da madrugada. A primeira vez com essa Lua. Lua.

Seu olhar foi para a dona da noite. Foi impossível conter as lágrimas. O quê estava fazendo? Tinha tido tantas aventuras nos últimos meses. Cortado toda a comunicação com sua vida passada. Criado uma nova história para si. Ela era o que quisesse ser. Então por que? Por que não se sentia bem? De uns dias para cá vinha sentindo essa sensação. Esse desejo estranho. Queria um lugar confortável. Queria uma tranquilidade. Tinha planejado essa tranquilidade quando conseguiu o novo nome. Mas... por que não se sentia bem? 

Parou de caminhar sentando-se em uma pedra. Os pés doíam. O cotovelo amplamente esfolado de tantas vezes que havia pulado de um carro em movimento. Já podia trabalhar como dublê. Dublê. Clara era a dublê. Ela tinha de voltar a tomar o protagonismo. Voltar a tomar decisões acertivas, decisões que não passassem por estar no meio do nada, três e quatorze da manhã, sob a luz da Lua.

Da mochila bebeu um gole da águardente que tinha afanado em um mercadinho dois dias atrás. 

Deu mais um gole. 

E outro. 

E outro. 

E mais um.

Foi dar o próximo. A garrafa estava seca. Não conseguiria engolir mais. Quando a primeira lágrima saiu vieram toneladas de outras. Toda a dor. O sofrimento. A angústia retida nos últimos meses com essa viagem saiu toda de uma vez. O choro veio acompanhada de gritos. 

Berros. 

Sentiu a garganta queimar. 

Soluçou. 

Tornou a berrar.

O choro vertia do seu ser. Toda aquela fúria. Aquele ódio. Se um veículo grande passasse agora ela certamente pularia na frente dele. Quis o destino que ninguém aparecesse. Ela precisava desse tempo sozinha. Completamente sozinha. Era isso que ela tinha conseguido nesses meses todos? Conheceu muita gente interessante. Mas sempre que começava a ganhar afinidade ela sumia. Desaparecia sem deixar o menor vestígio. Quer dizer. Uma vez. Uma pessoa veio atrás. Uma moça. Queria saber mais dela. Queria a história dela. Dizia querer ajudar. Mas ela precisava se libertar completamente. Assim que a pessoa veio atrás ela deu um jeito de sumir. Saiu caro. Ela se sentiu mal na hora. Mas era preciso.

O berro foi cessando conforme a voz se esvaía. O corpo foi pesando. Pesando. Adormeceu ao lado da pedra. Não era a primeira vez que dormiria às margens de uma rodovia. Mas, talvez fosse a hora de ser a última. Sentiu frio. Com ajuda de um isqueiro roubado de um bar acendeu uma fogueira. Jogou alguns papéis e logo a fogueira ficou Clara.

Acordou com vozes. Perguntavam se ela estava bem. Se queria que chamasse uma ambulância. O braço todo esfolado e sujo. Um policial era quem lhe fazia as perguntas. Lhe pediu os documentos. Tirou do fundo da mochila, estavam amarrotados, sujos. O homem da lei ofereceu carona até a cidade mais próxima. Ela aceitou. Sorriu ao ver um ônibus com a placa indo até a metrópole. Dinheiro não seria um problema, nos meses de estrada conseguiu juntar uma quantia boa varrendo restaurantes, limpando motéis. 

Entrou no veículo. Não sem antes agradecer ao policial. Ele perguntou se ela queria mesmo ir para a Metrópole. Ela respondeu dizendo que tinha coisas a resolver por lá. Ele pareceu entender perfeitamente, lhe ofereceu um cartão, caso quissesse caminhar sozinha pela estrada novamente. Na primeira parada comprou um chip de celular. Com os olhos marejados digitou uma mensagem à unica pessoa que sentia total falta. Voltaria por e para ela. E por sí própria, claro. Respirou fundo. Enviou.

Mil quatrocentos e vinte e nove quilômetros ao oeste uma tela acendeu. Janaína não reconheceu o número. Abriu a mensagem. Seus olhos marejaram. A pulsação acelerou. O coração acelerou. A respiração acelerou. Tinha muita coisa para arrumar. Abraçou o diminuto aparelho. Tornou a olhar a tela. Era verdade.

A mensagem. Em poucas palavras. Sucinta como ela sempre foi.

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Estou voltando.
~ Helena.
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