segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Claridade

Segurava a caneca de chá semi frio com a ponta dos dedos. Precisava achar um lugar pra ficar. Sem essa de ficar um mês em cada cidade. Fixar num lugar e juntar os cacos que sobraram da vida e ver se deles podia aproveitar algo ou a única opção era comprar logo um vaso novo. Pensou em quanto tinha na carteira, o quanto tinha no banco... não era muito, mas o suficiente para dar um pontapé inicial na sua jornada. Na tela do celular olhou as fotos que insistia em guardar, as mensagens pedindo que voltasse. Chega. Deletou tudo. Não guardou nada.

O fato de ter se embrenhado interior adentro do país a fez conhecer muitas pessoas interessantes. Escritores, músicos, donos de bar. Mas sempre preferiu cortar relações, não queria correr o risco de estar perto demais do lugar onde veio. Agora estava em Guaíra, interior do Paraná, pensando no próximo destino. Destino. Sempre boa ouvinte notou a conversa de dois caminhoneiros no balcão do lugar onde estava. Uma garrafa de cerveja era a única parede entre eles. Conversavam sobre ser possível conseguir qualquer coisa no Paraguai. Com os dedos rolando um site de notícias qualquer o ouvido captava cada palavra. Com a ponta dos polegares fechou o site e abriu o aplicativo de mapas. Não estava longe da fronteira. Essa era a oportunidade que esperava.

Mochila nas costas, tênis meia vida nos pés e diversos novos conhecimentos na cabeça. Conhecimentos como: pra que gastar com ônibus quando pode-se arranjar uma carona? Claro que era perigoso por ela ser mulher e estar sozinha. Claro que já teve de saltar de um carro em movimento porque foi assediada por quem lhe dava carona. Mas e daí? Quando chegasse à Ciudad del Leste precisaria de cada moeda que tivesse. Verdade seja dita: só sendo muito doente da cabeça pra querer alguma coisa a mais com ela que tinha cicatrizes nos braços por seu antigo vício de se mutilar.

Normalmente os cortes eram o começo de uma conversa e até o ganho de uma simpatia por parte do motorista. Não raro acabava ganhando uma carona seguinte por conhecer o outro motorista, às vezes alguns trocados, um lanche... e a cada vez contava uma história nova. Ora fugiu por ser abusada pelo pai. Ora fugiu por sofrer ameaças de morte da madrasta. Nunca a história real de que, um dia acordou, e colocou o pé na estrada, sem dramas, sem traumas.

Chegou em Foz do Iguaçu num final de tarde. Ficou em uma pequena hospedaria, pagou barato no pernoite. Jantou o lanche que o último caminhoneiro havia lhe dado: um pastel de queijo com um refrigerante barato. Aos primeiros raios de sol estava pronta para atravessar a ponte que liga os países. Quando viu o posto da Polícia Federal pensou que, ao dar os documentos para a travessia, surgiria o aviso de que ela estava desaparecida. Mesmo sendo maior de idade a polícia leva pessoas desaparecidas de volta aos lares de origem. E ela não queria isso. Quando a fila andou mostrou o documento certa de que sua jornada acabava ali. Um policial que cobria o bocejo com as costas da mão e comentava com o colega que checava a mochila da péssima noite de sono provocada por um ventilador quebrado. Ela sorriu de canto quando o sonolento perguntou o motivo da ida ao Paraguai. "Estou viajando a pé pela América do Sul... quero escrever um livro." Foi a resposta mais plausível que pensou naquele instante. "Legal, escolheu a pior fronteira para passar, aqui perguntam tudo. Enfim, boa viagem e cuide-se...".

Seu documento passou. Viu a nova definição de formigueiro humano ao entrar na principal rua de comércio da cidade. Caminhou não mais que meia hora e descobriu uma pessoa que conseguia documentos. Curiosamente era uma mulher quem comandava tudo. Yolanda, dizia ser espanhola, veio para um concurso de tango em Asunción e acabou ficando depois de um assalto onde perdeu todos os documentos. Tentou os meios legais mas acabou na porta de um falsificador famoso e talentoso. A fagulha surgiu e se enamoraram meses depois. Quando ele foi preso ela assumiu os negócios.

Enquanto esperava que Yolanda digitasse  algumas informações. Ela pediu cidadania argentina, mas ter morado no Brasil desde criança, o que explicaria o espanhol ruim. A espanhola de olhar fraterno ao mesmo tempo que rígido quis saber da moça de que ela fugia. "De tudo e todos" e o olhar baixo deixando aparecer as cicatrizes. Ela era boa dirigindo a cena. Faltava um detalhe apenas: o nome. Pensou um instante. Buscava renovação. Buscava se recriar. Catar dos cacos uma nova vida. Buscava luz. Sorriu de canto, afastou pouco os lábios e, quase num sopro de voz, disse "Clara". O som do novo nome ressoou pelo ambiente até que foi quebrado pela impressora matricial que imprimia tudo. Clara Cabañas.

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