quarta-feira, 1 de março de 2017

Das Cinzas

Janaína havia declinado várias investidas de seus "amigos-colegas" sobre passar o carnaval em outro lugar. Ao fim de muita insistência e muitas palavras como "eu também não gosto de carnaval, vou pra espairecer esse último ano de faculdade" ela acabou cedendo. Assim ela pegou seu carro e levou uma de suas colegas. Na hora da saída disse que ficaria num quarto sozinha, porque carnaval e "vai que..." e riu. Todos riram. Na verdade tudo que ela queria era um lugar para se esconder quando a agorafobia batesse. Assim a "amiga-colega" entrou no carro e desceram em comboio até a cidade litorânea. Ela sorriu quando viu o mar. Era do mar, mas tinha escolhido se afastar antes que o velho desejo de se misturar a ele fosse para a terceiridade.

Ele estava sozinho. O trabalho ia bem, a motocicleta em dia. Tudo funcionando tal qual um relógio suíço. Não fosse pelo detalhe de não ter sido convidado para nada. Seus amigos já sabiam que era perda de tempo, ele recusaria qualquer oferta de sair, viajar, festa. Só iria quando e para onde quisesse. E tomar essa decisão, no tempo livre, era raro. Seu tempo livre não gostava de se comprometer com ninguém. Ela tinha sumido de novo, como se isso fosse novidade. Com a pianista uma ou duas frases via aplicativo. E, na espera pelas duas, ou nenhuma ou alguma outra que viesse a aparecer, ele preferia ficar na dele. Quieto. Mas hoje imbuiu-se de uma energia diferente. Só queria beber um pouco, quem sabe comer algo diferenciado. Foi assim que redescobriu a maior merda de se morar numa cidade litorânea: todo mundo vinha parar ali.

Quarta-feira de cinzas. Ele entrou no barzinho temático dos anos sessenta. Foi ali que conheceu a pianista. Sentou no balcão e pediu um cowboy. Na televisão passavam alguns clipes de rock mesclados com algumas coisas pops. Janaína entrou torcendo para que não visse nenhum conhecido. Fingiu um mal estar o feriado todo e ficou no quarto até hoje, quando decidiu sair para beber algo. O ambiente era agradável, a música não era samba, pagode, sertanejo ou uma mistura satânica deles. Enquanto pedia uma caipirinha pensava no oásis que tinha acabado de achar.

Ele, mastigando uma pequena porção de torresmo olhava para ela de canto. Moça bonita. Não havia nada de especial nela, parecia uma fugitiva solitária sem ficha criminal. No mínimo havia dado um bolo em todos os amigos e veio para cá se esconder. Tipo ele. Colocou mais um pedaço de torresmo na boca enquanto, na televisão, tocava os primeiros acordes de Hotel California. Na versão com o Eric Clapton. Sua visão foi para a tela.

Janaína foi atraída pelo dedilhar do começo da música. Quando mais nova tentou aprender aquilo. Desistiu quando cortou os dedos nas cordas do violão. Por uma respirada não fez como Pete Townshend e esmigalhou o Tagima no chão. Verdade seja dita: ao olhar para além da televisão viu ele parado, olhar fixo na tela, uma porção de torresmo, o primeiro pensamento foi no pobre do suíno frito salgado. Podia pedir para si uma boa quantidade da mesma iguaria. Mas resolveu se aproximar do estranho. Bonito, introspectivo. A julgar pela roupa não parecia turista. E nem nativo. Era, como dizia aquela música de conhecido compositor gaúcho "vindo de outros tempos mas sempre no horário, peixe fora d'água, borboletas no aquário.". Enquanto ela caminhava na direção dele, para se sentar ao lado do mesmo pensava se ele também estava ali por amor às causas perdidas. 

- Cabe mais uma nessa porção de torresmo?

- Tudo depende dessa uma vir acompanhado de apresentações e mais uma rodada de álcool.

- Acho justo... também fugindo do carnaval?

- Touchê. Aqui é um dos únicos lugares da cidade que não está tocando samba, pagode ou qualquer outra dessas coisas típicas dessa época.

Janaína sorriu estendendo a mão ao, ainda desconhecido se apresentando. Ao passo que ele fez o mesmo. Dez minutos depois ela sorria e contava ao estranho coisas que jamais contaria aos amigos que lhe trouxeram para o carnaval. Quer dizer, aqueles lá não eram verdadeiros amigos. O estranho sim, ele era alguém pra chamar amigo. Desde que Helena havia decidido ir embora Janaína se sentia sem ter com quem conversar. Tentou iniciar um blog, um diário, algo do tipo. Mas desistia no fim da primeira tentativa.

Ele, por sua vez, via na moça um bom papo - algo raro -, porém não conseguia ver nada além de conversa, amizade. Será que ele estava desistindo em definitivo desses sentimentos mais profundos? Provavelmente as últimas vivências dele não foram necessariamente boas a ponto dele querer ter um envolvimento maior. Tudo que ele queria agora era conversar, precisava disso. Merecia isso.

Trocaram números de celular enquanto esperavam o balconista trazer mais uma rodada da combinação álcool e torresmo. Se aproximaram. Talvez fosse um beijo mas não. Sem saber estavam se tornando bons amigos. O sentimento que surgiu entre eles era mais como uma irmandade do que algo baseado em amor ou até mesmo sexo. Por isso Janaína, mesmo tendo desejos aquietou-se frente a ele, viu nele uma tranquilidade, um confidente que só via em Helena.

Ele, por sua vez, com um sorriso sincero que a muito não via a luz do dia viu em Janaína o lado que fez se encantar por Ela. Viu também o lado brincalhão, que discute interesses semelhantes, que entende de assuntos filosóficos, que tem uma cultura a ponto de discutir os viés da obra de Bukowski, Baumann e ainda entender as referências em um clipe do Queen que só tinha visto na pianista. 

Será que Janaína existia? Será que ele existia? Ao fim de mais de três horas de conversa, álcool, torresmo e mais conversa se despediram não sem antes programar algo para a páscoa ou o próximo feriado ou quando desse. A verdade é que os dois não entenderam o que havia acontecido ali. Os próximos dias diriam a eles o que aconteceu e a amizade, parceria, irmandade tenderia a se fixar ainda mais. Dali alguns anos lembrariam que tudo começou em uma quarta-feira de cinzas...

2 comentários:

Ivana disse...

Boa narrativa, fluída, bem articulada, o autor apresenta grande erudição sem pedantismo numa linguagem coloquial e contemporânea. O rapaz realmente tem talento. Parabéns!

Palavras de Adriano, professor de português da escola

Ivana disse...

Quando a mim... acho muito legal o que você escreve, sempre gostei, do humor ácido, das palavras ocultas, aos suspenses...