domingo, 15 de maio de 2016

Para-Quedas

Para ele o universo tinha algo pessoal contra ele. Não podia ser. Tudo bem que ele nunca se esforçou para procurar alguém e os "alguens" sempre "caiam de para-quedas" na sua frente. Mas, estranhamente, todos que apareciam do nada na sua vida subiam no avião para saltar novamente - e, dificilmente, caiam na frente dele novamente. Não que não soubesse se virar, correr atrás do seu, fazer todos os esquemas, cálculos, planejamentos, que precisava fazer para sobreviver.

Falando sobre viver ele não se sentia vivo fazia um bom tempo. A laje, as estrelas e a Lua, suas únicas companheiras. Claro, não podia se esquecer da motocicleta preta estacionada na garagem. Parceira de tantas viagens, de tantos rolés... de súbito pensou que o frio estava chegando. Desceu para a cozinha. Não tinha a menor vontade de fazer chimarrão ou beber uma vodka. Do armário sacou uma caixinha de chá de erva doce que devia residir ali desde o inverno passado. 

Ferveu a água imaginando que ela estaria fervendo água pro café com aquele maldito cigarro entre os dedos. Ele sempre odiou cigarro, o simples cheiro desde criança lhe fazia ter ânsia de vômito. Mas com ela não sentia o cheiro. Não o cheiro completo. Sentia um cheiro fraco, como se quem fizesse o mau hábito estivesse distante uns dez, doze metros. Será que isso era culpa do sentimento? Quem sabe. Hoje ele havia voltado a sentir nojo extremo de cigarros e derivados. Depois que "separaram" nunca mais teve noticias dela. E não era culpa de ninguém. Subiram no mesmo avião, mas depois do salto cada um pousou milhas distantes um do outro.

Enquanto achava uma xícara no armário seu pensamento se perdeu na música que tocava em uma rádio dessas que não tocam a música da moda ou o último sucesso do sei-lá-quem. Era uma versão de Für Elise tocada com maestria por um pianista tcheco gravado dezenas de anos atrás. Foi aí que seu pensamento foi até a pianista. Merda. Essa sim entrou, literalmente, em um avião e saltou distante. O cabo da chaleira esquentou junto com a água. Tomou um pano de prato e jogou a água fervente na xícara onde o saquinho de chá aguardava. Essa era uma que deu as caras no começo do ano e depois sumiu. Provavelmente os ventos levaram o para-quedas dela para longe.

O liquido amarelou-se. Não colocaria açúcar. Nunca colocou. Mesmo em chá mate sempre preferiu beber in natura. Olhou o moedor de pimenta no balcão. Pensou um instante e moeu meia dúzia de voltas de pimenta dentro do chá. Bebericou um gole. E não é que sua invenção ficou boa? Um dia podia patentear isso e comprar um GPS, daria para as pessoas que gostava assim que elas subissem no avião. Quando elas chegassem ao chão ele saberia como procura-las. Terminou de beber sua mais recente invenção e recebeu um telefonema. Teria de ir à metrópole resolver alguns assuntos rápidos.

Pegou a jaqueta de couro. O capacete. A motocicleta. Trancou a casa toda e subiu a serra. Resolveu tudo que tinha para resolver em pouco mais de uma hora. Já que tinha vindo até aqui por que não acionar o GPS e ir procurar por ela? Não. Ainda não. Passou por sua velha casa. Os novos donos ou inquilinos estavam cuidando bem do jardim e da pequena horta que ele e ela haviam "desenvolvido" no fundo da varanda. A julgar pelas janelas bregas os novos donos deviam ter vindo do interior. Isso explicaria o fato de estarem cuidando das plantas. Que bom. Pretendia voltar quando resolveu ir até aquela padaria que ficava em frente do prédio dela. Ao chegar na padaria lembrou que ela não morava mais ali. Ainda lembrava de onde ela tinha ido morar. No caminho passou por alguns depósitos. Um deles estava em chamas que os bombeiros lutavam bravamente para combate-las. 

Chegou no endereço. Olhou a casa "viva". Janelas acesas. Música. Na verdade era apenas uma janela acesa - a da sala - e a música era baixa - o suficiente para ser ouvida mas não reconhecida - o silêncio na redondeza dizia para ele algo que ele só se deu conta ao olhar para o relógio do celular. Eram passados de duas da manhã. O cheiro de café misturado ao de tabaco veio da casa. Dois cheiros que ele nunca gostou. Dois cheiros que ele reconhecia como sendo dela. Será que ela estava tão acinzentada quanto ele? Será que aquela caixa de lápis de cor já havia se acabado? Desligou a motocicleta ficando do outro lado da rua. Na mochila que levava meia dúzia de pães. Provavelmente ela ainda teria achocolatado. Mas... a dúvida lhe ocorreu. Lhe percorreu por completo. Lhe consumiu de tal forma que ele ficou inteiramente inerte olhando para o muro nem tão alto que escondesse a casa e nem tão baixo que pudesse assanhar bandidos locais. Olhou para o céu como se buscasse uma resposta, uma luz divina, algo superior que lhe guiasse nessa hora de dúvida. Algumas estrelas apareceram entre as nuvens. Logo a Lua fez sua aparição e, no tempo de não mais que cinco minutos, o céu inteiro estava estrelado. Qualquer um que pasasse perto dele olhando para cima o teria por doido ou algo do tipo. Ele, citando Bilac, responderia "amai para entende-las! Pois só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e entendder estrelas.". Permaneceu inerte por mais tempo. Ficou sem ação. Será que ela sairia? As horas passavam-se sem que ele tivesse qualquer atitude. Ele ficou a espera de algo divino que lhe desse a resposta. Isso se essa coisa de divino, realmente, existia.

Um comentário:

ઇ‍ઉ disse...

Um som familiar lhe puxou de volta.


Rapidamente se sentou e encolheu as pernas sobre o sofá. Puxou o ar, mas outra vez ele não entrou. Lentamente foi se virando e de joelhos sobre o sofá, com a pontinha dos dedos puxou a cortina. Misteriosamente o céu estava estrelado, ia se perguntar como, pois o dia passou pesado, nublado, cinza. Mas antes de formular suas perguntas ao divino, um raio de luz a fez enxergar uma silhueta. Não era não era nítida, não era a esperada, mas a familiaridade daquela inquieta sombra, coçou muito levemente seus lábios. soltou a cortina, recuou ainda mais lentamente de perto da janela e agora seu coração estranhamente parecia que iria saltar pela boca. Estática por alguns segundo ou minutos, não soube precisar exatamente o período do transe, viu um filme passar pela sua cabeça, coisas das quais fez questão de esquecer, outras que de alguma maneira, se proibiu de lembrar, uma avalanche. Estava soterrada de memórias e de perguntas e de coisas que naquele momento não foi capaz de nomear...