terça-feira, 24 de maio de 2016

Madrugada

2:48.

O frescor da madrugada atingiu ele parado do outro lado da rua. Ouviu um ranger de metal antigo e, por um instante, pensou que fosse a placa pendurada naquela tabacaria no dois prédios a esquerda. Não, a placa estava imóvel. O que se abriu foi o portão. Aquele portão rangendo parecia o da velha casa em que ele e ela viveram tanto tempo e que hoje era bem cuidada por uma família com dois filhos pequenos que tinha vindo do interior buscando melhores condições de educação para as crianças. O olhar dele estava baixo quando ela se aproximou, quase como se mantivesse um respeito frente à figura dela.

Ele estava envolto em seus pensamentos. Tinha planejado ir embora quando a figura se aproximou mais. Quis sair correndo. Sumir. Fazer qualquer coisa. Mas algo prendeu seus pés ao chão. Correntes mais fortes do aço mais forte que jamais foi forjado mantiveram ele ali. Imóvel. Um vento frio ousou passar entre eles. A rua que antes tinha algum barulho ao longe tinha perdido todo o ruído que pudesse atrapalhar a comunicação dos dois. Foi quando a mão dela se estendeu no ar e ele se deu conta de que era ela mesma. O pé descalço no chão frio e sujo foi a primeira coisa que chamou a atenção dele.

Ele tomou a pequena - e quente - mão dela na dele sendo invadido por um calor que a muito não sentia. "Devia colocar um calçado nesse pé". Ele ignorou a frase dita por ela. Eles não precisavam dos clássicos cumprimentos, as clássicas frases clichês que começa todo dialogo. Essa conexão que trouxe ele, novamente, até a presença dela era a sintonia de que tanto ele, quanto ela, estavam em um momento cinza da vida. A pianista havia sumido da vida dele. A faculdade. Os amigos. O emprego. A comida. Tudo havia perdido a graça. Era como se faltasse algo. Algo que o toque da mão dela o fez arrepiar.

Entre. Café. As duas únicas palavras que havia entendido ditas por ela. Sorriram seguindo pela pequena calçada em que alguns tufos de grama ousavam crescer entre as pedras. Estavam em um silêncio tão gritado que não havia necessidade de palavras. Vibrações sonoras. Diziam tudo que havia para ser dito ali, caminhando ao relento. Entraram na casa. O som estava ligado baixo. A casa em meia luz e o cheiro de café e tabaco inundando o ambiente. Ele fez uma caretinha habitual frente aos vícios dela. Ela sorriu. Foram até a cozinha onde o cheiro de café era quase insuportável. Mas, por estar na presença dela, ele suportava.

Como conhecendo ele mais do que ele mesmo, ela tirou uma lata de achocolatado do armário. Colocou sobre a mesa dizendo que se sentasse. Logo apareceu mais uma xícara, leite, colher e biscoito maria. Aqueles minutos em silêncio só foram quebrados por um cachorro que latiu por um inimigo invisível. Eles, que até então mantinham um cenho formal - apesar de nunca terem sido formais um com o outro - sorriram. Ele começou falando dele. Da vida. Da faculdade. Dos amigos. Do emprego. Da comida. E de como tudo isso havia perdido a graça. De como tudo tinha virado uma paleta de cores monocromática. Depois de vários pares de minutos ele deu por encerrado sua ladainha.

Ela bebericou um gole de café. Até agora ela não havia falado nada. Apenas ouvido. Ele sorriu bebendo um gole do achocolatado a vendo inflar o peito e soltar o ar em seguida. Ela esboçou um sorriso e começou a falar. Da vida. Dos amigos. Do emprego. Da comida. E de como tudo havia perdido a graça. Falou da escala de cinzas que havia tomado sua vida. Falou de seus casos depois que eles se separaram. De como odiava essa vinhança. Do quanto sentia falta da vista que tinha no apartamento e que o tapete de borboleta havia sido destruído por um gato de uma vizinha velha que morava do outro lado da rua. 

Nesse instante, depois de longos pares de minutos falando ela enfim se calou e o som da voz dela ecoou por toda a cozinha por não mais que meio segundo. Em seguida o silêncio imperou. Dois pares de minutos se passaram. O líquido em ambas as xícaras havia esfriado. Foi quando as mãos se tocaram novamente. Com isso os corpos começaram a se atrair como se puxados por uma força maior do que eles. Um magnetismo. Algo maior do que eles. Maior que a rua. Que o bairro. Que a cidade. Que o continente. Que o planeta. Que todo o universo junto. Quando os olhos se fecharam e a ponta dos narizes frios se tocaram veio um sorriso de ambos. Os lábios se tocariam, novamente o beijo deles seria capa de inúmeras revistas, a imagem ganharia inúmeros prêmios por plasticidade da imagem, por verdade no sentimento que demonstravam. O primeiro raio da manhã foi a última coisa que entrecortou-se entre os lábios deles antes do toque.

9:15.

O despertador tocou. Ele abriu os olhos. Tudo não havia passado de um sonho. Outro dia de merda começava.

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