domingo, 23 de outubro de 2016

Rodoviária

Ela sabia que era a hora. Dizem alguns que chega uma hora que da um clique e a pessoa acorda da sua inércia, daquela sua letargia, daquela coisa de vivenciar e sentir tudo que se passa na sua vida pra um estado onde tanto faz. Helena havia chego nesse instante. O clique havia sido tinham algumas horas, por isso ela estava com aquela mala diante da cama e as roupas entrando dentro dela. E daí que eram três e meia da manhã? E daí que amanhã de manhã Janaína tinha combinado de vir vê-la? Tudo que queria era uma fuga. 

Com a quantia que tinha guardado nesse ano todo de sobriedade poderia comprar uma bela passagem de para algum lugar distante o suficiente. Temia o que os outros diriam. Por isso enquanto colocava as camisas, calças, meias, calçados, documentos, um pato de pelúcia que havia ganho de Janaína pensava em quais palavras escreveria em sua elegia frente à vida que levava. 

Nesse ano de sobriedade finalizou o ensino médio, chegou a começar a estudar para algum vestibular - psicologia, era o que todos diziam - e descolou um emprego em meio período que lhe permitiu ajudar financeiramente em casa e ainda comprar coisas para si. Claro que tinha uma caixinha onde escondia algum dinheiro para "algo extraordinário" que faria. Sorriu de canto confrontando o espelho da penteadeira. Era agora o tal "algo extraordinário"? Mais ou menos.

Mais porque sair como ela estava pretendendo era, sim, extraordinário. Era aquela coisa de ruptura com o que se tem indo rumo ao que não se faz ideia do que seja. A sensação de estar fazendo a coisa mais idiotamente genial que alguém, na situação dela, poderia fazer. Claro que era algo tresloucado e relativamente "do nada", mas... as melhores coisas não são feitas assim em um impulso?

Menos porque sair como ela estava pretendendo era, sim, extraordinário. Era aquela coisa de ruptura com o que se tem indo rumo ao que não se faz ideia do que seja. A sensação de estar fazendo a coisa mais idiotamente idiota que alguém, na situação dela, poderia fazer. Claro que era algo tresloucado e relativamente "do nada", mas ... as maiores merdas não são as coisas feitas assim?

Por um instante olhou o espelho. Se questionou se devia ou não fazer isso. Tinha a resposta. Sabia o que devia fazer. Se sentou na cama um instante. A mala pronta. O coração cheio de desejos. A alma cheia de vontades. Lembrou daquela música do Nenhum de Nós, cantarolou baixinho enquanto se sentou na penteadeira, tomou uma folha de papel nas mãos, uma caneta preta. Respirou fundo, sorriu, chorou e naquela meia hora escrevendo sem parar, ela percebeu que, o que fazia agora, era importante sim. E não era uma fuga. Era a busca por um reencontro. Um reencontro consigo mesma. Deixou uma pequena estátua de bailarina sobre o papel, a caneta voltou à caneca onde residia, suspirou e saiu em direção à rua. Da rua um carro que chamou pelo aplicativo, de lá para a rodoviária. Escolheu o lugar por sonoridade. Viu o sol raiando pela janela do ônibus já na estrada, ainda teriam centenas de quilômetros até seu novo destino. Adormeceu com essa esperança e um fino sorriso nos lábios.

Um comentário:

ઇ‍ઉ disse...

Pode demorar, mas sempre chega a hora do dia D. Aquele momento em que finalmente entendemos que TUDO não depende do outro, e sim de você pra acontecer.

Há tempos eu não sentia esse "impulso", me lembro que uma das melhores que tive, me levou de pés descalços a praia, e fiquei lá por horas. Acho que a melhor forma de se encontrar é se permitir vez ou outra, se perder.