domingo, 2 de outubro de 2016

Kunoichi

Dizem que no calor de uma batalha é que se forja um guerreiro. Janaína devia ser guerreira quando, do seu acampamento, colocou a máscara que todas as Kunoichis usavam antes de ir para a guerra que ocorria não muito longe de seu acampamento. Checou uma última vez todas as ferramentas que precisaria para a batalha. Tudo estava ali dentro do seu alforje. Garantiu que a vela que usou para essa conferência estivesse bem apagada pois não queria sua tenda em chamas. No percurso até o campo de batalha passou por diversos guerreiros feridos voltando para os alojamentos, algo que sempre a fazia perguntar se realmente era aquilo que ela queria.

Nunca teria essa resposta. Talvez nem quisesse essa resposta por enquanto. Não estava em condições de ficar questionando os motivos da guerra nem porque tanta gente lutava ferrenhamente enquanto os coroneis ficavam em suas confortáveis tendas. De um desses generais recebeu sua missão: se infiltrar em território inimigo, obter informações importantes e, se possível, não ser descoberta. Alguém mais atento notava que o alforje de Janaína só tinha um dos lados ocupados quando ela saiu de seu acampamento. Pois agora, uma vez com missão, ela preencheu o outro lado do alforje dando mais estabilidade ao carrega-lo.

A verdade que um estágio em um jornal não era o que Janaína sempre quis. Seu curso nem era esse. Mas tinha contas pra pagar e, por enquanto, era o que tinha pra hoje. Fotografia sempre foi uma de suas paixões. Mas a fotografia de paisagens - naturais ou urbanas - e não a desgraça humana. Não que fosse tão misantropa, porém a ideia de registrar protestos, cenas policiais ou qualquer outra coisa relevante pra esse veículo popularesco era válido e bem visto aos olhos do coronel. Coronel mesmo, reformado do exército, dispensado por excesso de contingente. Um país em tempos de paz é um saco pras forças militares.

Aquele dia tinha ouvido falar de um protesto que ocorreria no centro da cidade e que, provavelmente, haveria confronto de estudantes - como ela - e policiais. Janaína tinha nas mãos uma câmera que valeria uns cinco ou seis meses de salário. Mais se contar o valor das lentes. Ao chegar no lugar logo sacou a máquina e tratou de fazer dezenas de fotos dos alunos, das faixas, das reivindicações, do que eles queriam. Melhores condições. Justo. A polícia observava de longe. Que fiquem lá. Ficou duas horas, o protesto se dissipou sem balas de borracha, sem bombas de gás lacrimogênio, sem bombas de efeito moral. "Chato e sem graça" aos olhos dos editores do jornal que, certamente, ignorariam a maioria das fotos de Janaína e, no máximo, noticiariam o relato dela com aquela foto que não mostrava rostos nem faixas de reivindicações que eram contra o governo e, por tabela, contra o jornal. Por tabela porque o coronel tinha ajudado o governador a se eleger e como "agradecimento" o jornal havia vencido uma licitação milionária que valeria alguns anos de sobrevida à uma gazeta que vendia o suficiente para se manter com a equipe minima. Porém Janaína se deu conta de que, tanto ela quanto os outros três estágiarios, só estavam ali por essa verba extra. Ou seja, indiretamente ela era uma peça dessa máquina podre. Pensar coisas assim deprimem.

No caminho de volta pro jornal fotografou idosas em uma praça que faziam tai chi chuan. Conversou com a coordenadora, havia uma moça da faculdade de Janaína que estagiava ali e havia outra vaga, mas pra trabalho voluntário. Voluntariado era lindo, mas não ajudava a pagar os boletos que insistiam em vir mês após mês. Contrariando Nando Reis ela dizia que o mundo não é bão, Sebastião. Antes de entregar matéria pronta e as fotos descarregou as fotos das idosas e guardou pra si. Quem sabe conseguisse negociar e publicar em algum jornal menor, quem sabe o jornal da faculdade. Era uma.

Findado o estágio nossa nobre Kunoichi esvaziou o alforje e seguiu para a faculdade. Comeu um-qualquer-coisa no caminho. Seu curso de publicidade insistia em tentar transformar todos os seres sem iluminação - alunos - a serem aquele publicitário fodão, que ganha mil prêmios, que vai pra cannes todo ano, que abre agência aos vinte e seis, que se esgota aos trinta e dois, que vende a agência aos trinta e quadro, que aos trinta e cinco descobre uma úlcera e que, na porta dos quarenta, se sente frustrado com tudo e, ou vai dar aula, ou vai trabalhar em algum lugar pequeno. Janaína não curtia essa forma de viver. Ela, apesar de ter vivido boa parte da vida em uma cidade de duzentos mil habitantes sempre teve um lado com a natureza, com as coisas naturais, com o que não pode ser comprado, com as sensações.

Mais um dia acabou. Hora de driblar os convites pro "novo bar que abriu" ou praquele show daquela cantora que está bombando. Não. Tinha uma coisa pra fazer nos próximos dias que precisava fazer. Mais do que ir em bar, show, estágio, faculdade, casa, puta que pariu. Tinha de ir visitar Helena que havia respondido a mensagem. Dizia estar bem, que as coisas estavam se ajeitando e que também sentia saudade da amiga. Ao entrar em casa sorriu de canto tomando desse protótipo de escritor a pena e assumindo os escritos... Hey, Lu, esse é minha terceira crônica em sequência, posso pedir música? Posso né? Quero pedir Nenhum de Nós - Aquela Estação porque sei que escreveu outro texto ouvindo eles e que agora está assistindo enquanto escreve o DVD Acústico e Ao Vivo Dois. Agora pode pegar a pena de volta e terminar a crônica... Bom, depois de quebrar a quarta parede Janaína preparou algo para comer, tomou uma ducha rápida, colocou algum filme antigo no netflix. No próximo final de semana visitaria Helena. Foda-se faculdade, estagio... precisava de alguém que lhe conhecia a fundo e estava desatualizada. Por já ter citado Nenhum de Nós cantarolou "por favor me traga uma notícia, mas que seja boa" enquanto o filme fechava os créditos e se deixava dormir.

Um comentário:

ઇ‍ઉ disse...

Acho que ando meio "Janaína", precisando de lugares e pessoas que me conheçam a ponto de me lerem, sentirem, saberem de mim, coisas que nem eu mesma estou sabendo "saber". Ando enterrada em filmes e livros, acho que estou tentando encontrar as respostas. A porra é que não tenho as perguntas.

Acho que é isso. Estou atolada, afogada nas respostas das quais talvez eu saiba que não me levaram a lugar algum. Foda-se. Eu nunca me importei muito com isso "de lugar mesmo". Acho que você também não rs

Tenho visto tantos créditos subirem que a impressão que tenho, é de que cada madruga esta mais curta. Mas isso também não importa, antigamente quando eu me recolhia na bolha, dormia por tantas horas que o povo dizia que eu "não via a vida passar", agora eu tenho visto TUDO passar, inclusive a vida dessa galera torpe que não faz ideia de quão mágica podem ser as madrugadas insones.

É LorúPrê, o que seria de nós, senão escrever?

Estou sobrevivendo como Janaína, que corre contra o tempo pra dar conta de seus a fazeres, e procura desesperadamente um colo pra correr. (nada fora dos meus padrões) Ai ai...