quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Lata de Coca

"Socorro." As palavras tem fugido dele e, quando eram pra ela, elas enchiam a garganta tal qual Bentinho depois do primeiro beijo em Capitu. A vontade de gritar mil coisas ao mesmo tempo, fazer com que a voz possa emitir uma palavra por cima da outra. A parede, outrora inspiração, agora era opressora. O cansaço, que até não muito tempo atrás era mera formalidade após um dia a mais vivido agora é fator determinante que me me açoita tal qual o cilício açoitava os penitentes da idade média.

O pior talvez não seja nem as palavras subirem a garganta, vindas do coração, todas ao mesmo tempo. Se fosse possivel registrar a cena seria como a Imigrantes em feriadão. O pior é aquele sufocamento que tal sensação cause. A sensação - que já chegou a ser boa e hoje era mortificante - matava aos poucos. Num dos raros intervalos do trabalho fugiu dos colegas que eram fumantes e dos viciados em café. Ambos os cheiros o faziam ter nauseas, se afastou. Na cantina comprou uma Coca-Cola, sem motivo especifico. Ao abrir a lata aquele barulho ecoou por todo o ambiente regressando pra ele amplificado. Logo no primeiro gole ele torceu o nariz. Como ela gostava tanto dessa porcaria? Aliás, por que diabos ele havia comprado isso? Caminhou até a janela, queria pragueja-la, reclamar por ela ter passado os vicios pra ele. Não os vicios propriamente ditos, mas as manias. Os transtornos obcessivos compulsivos. Da cantina até a janela mais próxima eram quatorze passos. Quatorze. Par. Ela havia lhe passado essa mania de, vez por outra e sem nenhum motivo aparente, "moldar as situações" pra elas sempre acabarem em números par. Se precisava, no meio do trabalho, ir ao banheiro, se propunha fazer mais dois roteiros antes de se levantar. Fazia um e o segundo era feito às pressas, já com a bexiga estourando. E ambos ficavam bons pros superiores dele.

Ao chegar na janela o tempo estava fechado. Chuvoso. Era uma quinta-feira. Sorriu de canto reclamando com ela por ter lhe passado aquelas manias doidas dela. Será que ela ainda pensava nele? Uma nuvem tratou de responder que sim, ela ainda tinha ele nos pensamentos. Assim como ele ainda a tinha em seus pensamentos. Ao longe ouviu seu nome. Não era com ele. Duas, três, quatro, cinco... na sexta vez ele se virou. Lhe pergutaram onde estava e ele só deu de ombros. Ninguem entenderia o longo e sério papo que havia tido com aquela grande nuvem cinza. O dia transcorreu sem maiores sobressaltos. A sexta se aproximava e ele não tinha planos para o final de semana. E se...? Ele decidiu arriscar tudo.

No sábado, ainda nublado, mas sem previsão de chuva, logo cedo pegou o capacete, a jaqueta, encheu o tanque da motocicleta, colocou duas mudas de roupa na mochila e subiu a serra. No caminho parou no prédio dela. O porteiro o reconheceu, dez minutos de conversa e ele tinha o novo endereço dela. Por que ele nunca fez isso? Esse era mais um daqueles mistérios da vida que ninguem sabe explicar. De quebra ainda pegou algumas correspondências que ela não tinha vindo buscar naquela semana. Graças ao celular descobriu uma rota para chegar lá. Uma casa baixa, de muro médio e um portão de gradezinha fina. Estacionou a moto fora do alcance de visão. Bateu palmas e berrou a plenos pulmões "carteiro", quando tudo que queria gritar era "socorro", não no sentido real da palavra. Mas num sentido semelhante ao do Ali-Babá abrindo a grande caverna de pedra. Veio todo o caminho pensando que estava numa situação desesperadora. Dormia mal, trabalhava demais. Por isso o pedido de socorro, ela era a tranquilidade dele. Ela, apesar das idas e vindas da vida, era o porto seguro dele, assim como ele também era o porto seguro dela. Ambos, duas ambulâncias prontas pra atenderem um ao outro. Quando a porta fez barulho de destrancar ele quis fazer mil coisas: evaporar, sair correndo, se mostrar desde o início. Mas não. Ficou numa posição onde ela podia ver que havia alguem no portão, mas não ver quem era. Assim ela viria até ele e eles teriam aquela coisa que só eles sentiam, que não se explicava, que apenas se sentia... se vivia.

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