sábado, 15 de março de 2014

Talvezes

Talvez a melhor coisa em ser adulto seja poder dar patada em alguem sem precisar explicar o motivo na hora. Depois, se quiser, você explica, mas na hora da patada, é só dar a patada e pronto, é como se todos fossem culpados por algo que te aconteceu. E não eram?! Sempre levei patadas dos adultos quando era criança e sempre achava que a culpa, efetivamente, era só minha. Talvez em algumas vezes fosse mesmo, mas, na maioria das vezes não era.

Desde que Helena se sentou diante de minha porta, com uma mochila e a história de fuga que tenho pensado, seriamente, nisso. Já faz uma semana desde que ela veio e se instalou. Depois de algumas horas conversando com os pais dela ambos chegamos a conclusão de que, antes comigo do que com outra pessoa. Engraçado refletir que, tanto eu, quanto Helena temos praticamente a mesma idade e, mesmo assim, os pais dela me acham mais madura. Talvez porque não me conheçam completamente.

Verdade seja dita: era bom ter alguem comigo. Sobretudo com a proximidade de uma data que selou meu destino, não que a lembrança não viesse dia após dia, mas as datas - digamos assim - "fechadas", que completam ciclos de um ano são as piores. Fossem quantos anos fossem as pessoas só se lembravam no exato dia que completava um ano, ainda que, pra física moderna, um ano nunca seja exatamente um ano. Um ano seria algo como seis horas antes do ciclo completo. De qualquer forma era bom ter Helena aqui. Ainda que o trato com os pais dela fosse dela ficar, no máximo, duas semanas com o objetivo de "tomar juízo". De fato ela tomava, mas não o juízo que seus pais almejavam.

No segundo dia dela aqui a embriaguês dela me fez a arrastar para baixo do chuveiro frio e deixa-la por meia hora. Trancada no banheiro. Enquanto os pais dela falavam que ela, mesmo tendo vinte e um anos, não deveria estar fazendo essas "meninices" eu sabia que tudo tinha um porém, um algo por trás. Em uma noite nos deitamos juntas, sem nenhuma conotação lésbica, praticamente como irmãs e ela, aos prantos - e me fazendo contar minha história depois -, me confessou o quê lhe afligia. E eu concordava que era complicado aquela situação toda. Afinal envolvimento com drogas, amores distantes, pequenos furtos... a história dela parecia coisa de cinema. Ainda que eu achasse que, boa parte, do que ela falava era, sim, mentira. Não, mentira não... talvez uma... ampliação da verdade verdadeira. Como quem diz que quebrou o pé e quando se vê só se quebrou a unha do dedo mínimo.

Quando os dias iam se aproximando eu ia chegando a conclusão de que, logo, ela iria embora e eu teria de contar minha história. Não era uma história bonita. Era triste. Foi ela quem me moldou assim, fria, calculista. Não era má, não fazia nada por mal, apenas não gostava de ceder mais do que o combinado. Se o combinado era dez, era dez e pronto, sem essa de nove. Talvez por pensar assim que minha família que ficou na distante Santa Catarina passou a me ver com outros olhos. Era uma quinta-feira, eu tinha dezessete quando tudo aconteceu. BR-101, não lembro qual quilometro. Apenas lembro que chovia. Curioso como a mente prega peças de eu não lembrar o ano mas lembrar que era uma quinta-feira e chovia. A pista estava molhada, o trânsito sempre carregado e as últimas provas da escola chegando. Nunca fui das melhores alunas, também não era das piores. Morava bem, não me faltava nada. Estava em casa, deitada na cama devorando um livro que havia ganho de presente, eram as últimas páginas. Quando virei a última página o telefone tocou. Ignorei. Terminei de ler e fui ver na bina quem era. Se não me falha a memória era o numero de um tio meu. Dez segundos depois o telefone toca novamente. Atendo. Dali em diante não prestei mais atenção em nada. Lembro do sol na segunda-feira seguinte. Só alguns meses depois a policia trouxe um laudo de que o carro onde eles viajavam aquaplanou e se chocou de frente em uma parede de pedras. Nenhum air-bag do mundo conseguiria deter a violência do impacto. Foi instantaneo, disseram. Ao fim daquele ano vendi a casa, e os dois outros carros que estavam na garagem. Completei dezoito no começo do ano seguinte e tomei meu rumo no mundo. Meus parentes nunca aceitaram completamente a ideia de que eu simplesmente vendi tudo e fui embora.

Amanha Helena vai embora. E hoje ela soube mais de mim. Assim como eu sei mais dela. Talvez seja destino que nos colocou diante uma da outra. Uma precisando de alguem de confiança e a outra só querendo alguem que não tivesse vínculo emocional. Fosse o quê fosse era isso. Ela estava dormindo docemente em meu colo enquanto eu acariciava seus cabelos. Talvez fosse a hora de arriscar alguma coisa, alguma coisa grande. Quem sabe uma arca que pudesse salvar nós duas. Isso. Uma arca. Ótima ideia.

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