sábado, 9 de novembro de 2013

Tranca

Entrar nesse prédio nunca foi dificil. Não pra mim. Portão com grade, porteiro, cerca eletrificada... nada me impedia de entrar. Sempre dava um jeito e entrava. E agora cá estava eu, a poucos lances de escada da porta dela. Meu joelho dolorido denunciava a falta de um elevador aqui, porém era o quê deixava o preço do apartamento menor em comparação à outros da mesma região e mesmo tamanho. Bati nos bolsos, merda, esqueci (ou perdi, não sei) a chave do apartamento dela. E era o com mais trancas no total, eram duas além da principal que ficava do lado direito. O problema é que eu quem tinha dito para ela instalar essas outras duas fechaduras, pois, apesar de Paris ser uma cidade turistica e, em teoria, haver um grande efetivo policial a imensa maioria dos policiais estava cuidando, obviamente, dos turistas deixando o resto da cidade à propria sorte, ou, como ela gostava de dizer "ao Deus dará".

Não tinha problema. Chequei embaixo do tapete na fina esperança dela ainda ter o costume de deixar as chaves debaixo do tapete. Não... ela sabia que eu estava viajando, que eu estaria na República Tcheca, mais precisamente em Praga, resolvendo alguns assuntos pendentes acerca de problemas antigos que, com o passar do tempo o apetite de Cronos aumentava. Franzi o cenho dando uma rapida olhada em volta. O corredor estava escuro o suficiente pra minha presença não se fazer percebida. De debaixo de alguma das portas vinha um som estereofônico de uma orquestra tocando juntamente de uma banda de rock, dessas mais atuais. Será que seria um DVD recém-comprado e tocado em alto volume quando a mãe do adolescente que ouvia saiu? Ou o pai que resolveu ver e descobriu que era bom, ou ainda a propria mãe que queria ver o quê seus filhos ouviam e acabou gostando, ou, ainda, quem sabe alguem que morava sozinho e pouco se importava com o volume. Muito embora pouco importava mesmo, as paredes dos apartamentos eram grossas o suficiente pra isolar o som, ao contrário das portas que, apesar de terem pequenos adornos que simulam uma porta trabalhada habilmente por um carpinteiro, eram finas e simples demais, ao ponto de que o som escapava por ela e ocupava o corredor.

De um dos bolsos - o da direita na parte de trás - tirei um pequeno arame. A "chave". Com certa facilidade destranquei a tranca do meio. A de cima e, consequentemente a de baixo, era daquelas do tipo tetra. Mais dificeis de se abrir, com uma tranca dupla que tinha que ser acionada simultaneamente. A maior dificuldade em abrir ela, talvez seja o fato dela equivaler a quatro chaves normais e não apenas duas, como pode parecer. Tanto que cópias dessas chaves eram inviaveis, era muito mais prático simplesmente se trocar a fechadura inteira. Volto a olhar em volta pensando ter ouvido um barulho... não. Impressão minha. Me abaixo pra "trabalhar" a fechadura de baixo. Só agora me veio, quase que de relance, o fato de que, se ela estivesse em casa, a tranca pega-ladrão estaria fechada, o quê tornaria o trabalho de abrir as outras três fechaduras inútil, porque aquela só se abria por dentro. Embora com um tranco bem dado provavelmente ela deveria abrir. Provavelmente.

Enfim a fechadura cedeu. Venci as três em pouco mais de dois minutos. Deveria ser um novo recorde. Agora apareceriam fotografos, uma apresentadora me felicitando pelo feito, platéia entusiasmada aplaudindo, o auditor do Guiness Book me comprimentando e dando os parabéns, o microfone da apresentadora viria à minha mão e eu agradeceria todos que torceram por mim para que eu conseguisse realizar esse feito e tudo mais. Agradeceria a minha mãe, ao meu pai que me ensinou a arrombar portas, à minha irmã por me apoiar, ao meu cachorro, ao velhinho que fica tocando sanfona próximo do Arco do Triúnfo, no fim da Chantz Elisè. Pisquei e a realidade voltou completa. A escuridão, os fotografos, a apresentadora, o auditor, a platéia e o recorde sumiram dando lugar ao som que ainda vazava por baixo da porta do oitocentos e dois.

Girei a fechadura. Ela não estava. Chequei o relógio. Vinte e duas horas e alguns minutos. Onde ela estava? Fechei a porta atrás de mim, trancando apenas a do meio. Adorava esse apartamento, tinha a vista da Torrei Eiffel toda iluminada, agora ganhando ainda mais luz pelo natal que se aproximava. Fui à cozinha e coloquei água para ferver. O vento frio começava a cortar nesse meio de novembro, o inverno esse ano prometia ser menos rigoroso que em anos anteriores. Talvez o aquecimento global fosse verdade afinal de contas. Caminhei pelo apartamento vendo que um dos quartos foi tranformado em um pequeno estúdio, sobre a cama dela algumas partituras... provavelmente ela tinha se inspirado por música agora. Faziam o quê? Dois, talvez três anos que não vinha aqui. Nossos últimos encontros sempre foram ou em minha cobertura, seis quarteirões daqui, ou em Edimburgo. A chaleira avisou com aquele apito irritante que a água estava quente e pronta pro meu chá. Sejamos britânicos, eu pensei fazendo um chá de laranja com gotas de leite e limão, mas sem açúcar. Caminhei na direção da sacada, queria ver a obra do Gustav brilhando e bebericar minha "água quente com gosto", como ela sempre disse. O quadro que ela havia pintado de mim, anos atrás, me encarou por alguns segundos. Cronos estava cada vez pior comigo. Me sentei e beberiquei o chá. Foi quando a porta do apartamento se abriu. Meu único movimento, praticamente involuntario, foi o canto dos lábios formando um fino sorriso. Logo ela viria ao meu encontro.

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