quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Bebendo Vinho

Não seria a primeira garrafa de vinho que morria em suas mãos. Não seria, muito menos, a última. Mas era a primeira que descia com tanta... facilidade? Devia ser. Sinal de que o figado estava cada vez mais amaciado, cada vez mais sereno. Tinha coisas a fazer, mas hoje ignoraria todas elas e dormiria com o celular desligado, telefone fora da parede, despertador sem as pilhas. Só não desligou a chave geral da casa por não querer comida estragada na geladeira. Se afundou nas cobertas e deixou que o porre fizesse o trabalho por ele. Dormir sem se preocupar com o dia seguinte. E como dormiu. Doze horas depois acordou sem dor de cabeça. O corpo todo relaxado. Tomou um banho demorado e religou o celular enquanto preparava uma bela xícara de leite com achocolatado.

Duas ligações e meia dúzia de mensagens. Primeiro as mensagens. Propaganda da operadora, um boa noite de alguem que morava extremamente longe e um convite. Nas ligações o mesmo número, repetido. A mensagem mais recente era a reclamação do número das chamadas perdidas "não vai atender ou não pode? Preciso te ver, assim que puder, me liga, beijos.". Bebeu um gole do achocolatado gelado - odiava beber isso quente, lembrava de coisas ruins da infância, coisas que siquer lembrava, mas sabia que tinham sido ruins - pensando se deveria responder. Na mesa uma moeda de cinquenta centavos - o troco pela garrafa de vinho - lhe deixava com a ideia de tirar na sorte se responderia ou não. Alea jacta est. Lançou a moeda ao ar. Sorriu de canto. A moeda parecia saber o quê ele desejava fazer. Ela devia saber o quê ele planejava. Bom ser compreendido. Respondeu a mensagem com um "amanha, na praia, fim de tarde, leve o violão que levo a gaita.".

Amanha. Porque hoje tinha uma coisa mais importante a fazer. Comeu um qualquer coisa na geladeira, colocou a jaqueta de couro, pegou o capacete, a moto e subiu a serra. Podia ir de olhos fechados que chegaria ao objetivo. Ao longe pode ver a fachada na cor salmão surgir no horizonte. A poluição daqui era terrivel e, no trajeto ate relativamente curto entre a rodovia e aquele prédio, já havia espirrado três vezes. Na mochila tinha remédio pra isso. Resolveu não tomar. Que se foda. Estacionou diante da padaria. Comeu um queijo quente e um pão de queijo. Respirou fundo e adentrou no edifício. O porteiro por um instante estranhou ele ali justamente quando ela não estava mas sabia que ele vinha às vezes quando ela não estava.

Subiu o elevador e, ao chegar no andar, notou a única porta com tapete. Aquele tapete que não queria ser usado como capacho. Na caixa da mangueira de incêndio a chave ainda estava lá. Coberta por uma fina camada de poeira tamanho a falta de uso ou de alguem pega-la nas mãos. Destrancou a porta e tudo estava praticamente igual. O sofá estava mais para o lado e a TV mais para o canto. Pensou em escrever uma carta... não. Chega de cartas. Merda. Estava conflitante consigo mesmo.

Acabou escrevendo uma pequena carta e a deixou sobre a mesa. Deixou o chaveiro da chave que havia usado sobre a carta, o lápis que havia escrito junto. Olhou em volta. Suspirou dando uma olhada rápida na foto dela que lhe encarava. Ele não tinha reação ao vê-la. Se levantou e deixou o papel ali. Ao sair evitou pisar no tapete afim de não suja-lo com seu calçado sujo. Trancou a porta e suspirou novamente. Da mochila tirou uma pequena caixa, dessas de aliança. Desceu colocando a chave dentro dela. Ao passar pelo hall deixou com o porteiro a caixa e disse à ele que entregasse nas mãos dela. Feito isso voltou à padaria. Comprou uma coca-cola em garrafa e seis pães. Sua janta estava pronta. Subiu na motocicleta se despedindo mentalmente dali. Ganhou a estrada, o ar limpo fez seus pulmões respirarem aliviados, um certo alivio pelo ar poluído da cidade. A estrada era pra onde apontava o guidão. Sem rumo, sem destino e sem pressa alguma em chegar ao futuro.

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