sábado, 10 de agosto de 2013

Lua Cheia

Os últimos dias tinham sido introspectivos demais. Perdido em devaneios ele mal se alimentava, apenas reagia aos estimulos. Foi quando, em meio a algumas caixas ainda não desmontadas desde a época da mudança encontrou algo que havia ganhado de seu pai, que havia ganhado do pai dele, que havia trazido junto de si de quando veio da distante Ucrânia: uma gaita de boca. Estava em uma pequena caixa, dessas de doce, pequena, mas grande o suficiente para caber a tal gaita envolta em papel de seda.

Resolveu limpa-la e tentar tocar alguma música. Tentou sem sucesso. Seguiu para a laje - fonte eterna de suas inspirações -, onde, sim, relembrou uma ou outra canção. Algumas notas, alguns refrões. Foi quando ouviu o portão abrindo e passos. Quem seria? Se esticou crente de que era ela. O sorriso largo se instalou nos lábios dele, ela havia vindo lhe ver e ouvirá a gaita e, surpresa por saber que ele sabia tocar algum instrumento, tomou a liberdade de entrar e se aproximar. A cadência dos passos era diferente dos passos dela.

Poucas palavras podem explicar o sorriso dele, de largo e cheio de felicidade, para algo mais fino, esguio, até com certa malícia. O gênero estava certo. A surpresa no rosto da outra pessoa também. Mas não era ela. Era a pianista de noites e noites atrás. Ela trazia no ombro um violão e nas mãos a chave de um carro. A praia. O plano dela era sentar na praia e dedilhar o violão, quem se aproximasse teria espaço para sua canção. A pianista trajava um longo vestido, uma sandália rasteira e uma blusa de alças. Nada sensual. Estava mais para despojada do que para sedução. Ele pensou um instante. Aceitou o convite. Ficar em casa sozinho seria pior, emburrecer em frente a programação televisiva de sábado a noite era um péssimo plano.

Seguiram para um canto mais afastado, onde a iluminação até chegava, mas não era tão forte. Lá podia se ver as estrelas com uma plenitude absoluta. Talvez apenas em desertos ou nos polos que se veem mais estrelas que ali. Do porta-malas do carro a pianista tirou esteira, uma bolsa e o violão. Ele se prontificou em carregar as coisas mais pesadas. Logo mais algumas pessoas se aproximaram, alguns turistas que ousavam passear em regiões litoraneas em pleno inverno. Embora inverno apenas no calendário, pois o clime estava ameno.

Foi quando ele, em meio ao dedilhar dela ao cantar que a chuva traga alivio imediato, ouviu seu celular. Era ela. O sinal do celular na praia era horrivel e, ao atender, pedindo um segundo e se afastando do grupo que cantava em um coro de fazer inveja a muitos corais, a ligação caiu. Checou as mensagens, haviam duas. A primeira anunciando a chegada dela, enviada da estrada. E a outra, enviada da porta da casa, que ela viu toda trancada ao chegar. Ele se afastou um pouco ligando para ela. Falaram poucos minutos. Ele a convidou para vir à praia encontra-lo, não mencionou a pianista. Ela recusou o convite, disse que só tinha vindo de passagem. Dez minutos, ele pediu. Discutiram brevemente e ela cedeu. Ele tomou um ônibus e chegou antes dos dez minutos se findarem. No caminho a pianista havia mandado inumeras mensagens perguntando onde ele havia se enfiado. Ele ignorou e apagou todas.

Sentia-se culpado pelo que havia acontecido. Será que ela sabia? Pergunta idiota. Claro que ela sabia. Ele sabia que ela tinha vindo se certificar de que aquilo que sentiu no coração era fato. Ele não tinha palavras. Era um deslise. Ele não podia ter feito aquilo. Nas duas centenas de metros que separavam o ponto de ônibus da casa dele, pensou bilhões de coisas pra dizer. Sabia que ela pensou o mesmo bilhão de coisas para dizer. Ele imaginava que ela teria uma terceira guerra mundial pronta à começar diante do que ele tinha feito. Na manhã seguinte do ocorrido ele tinha ido com a pianista para buscar o piano eletrico dela e receber pela noite. Ouviu de uma moça, morena, que havia gasto uma quantia consideravel em bebidas caras. As peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar. Merda, foi o quê proferiu três ou quatro vezes.

Ao vê-la, ali encostada na lateral fria do carro, braços cruzados, cenho franzido, careta de emburrada ele sabia que era sério. Ao vê-lo entrar na rua ela tirou do bolso o celular. Checou a hora. Ele abaixou o olhar. Ela estava puta da cara e o culpado era ele, apenas ele. Assim que ele se aproximou fez menção em falar. Ela pediu que ele se calasse. O coração dele parou. O ar parou. O tempo parou. Apenas o olhar se moveu vendo a mão dela lhe desferir um tapa no rosto dele. Logo em seguida, antes que ele pudesse expressar qualquer outro sentimento ela o puxou para si pela gola da camisa. Foi então que um beijo se fez e a lua cheia, grande e gorda brotou no horizonte.

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