sexta-feira, 24 de maio de 2013

musica na janela

Ela sentada à janela do apartamento de seus pais, oitavo andar. Tinha feito todo o dever de casa que a escola insistia em mandar, porém os planos de sair tinham sido frustrados pela noite, que chegou antes do que ela planejou. Olhou o violão em cima do guarda-roupas. Será que ainda saberia tocar? Tanto tempo que não dedilhava... se sentou a beirada da janela - assim o eventual som se perderia janela afora evitando transtornos com os vizinhos - e começou a dedilhar. Ainda se lembrava das posições de cada dedo. Tentou lembrar alguma música de cabeça. Só lembrava o começo de wish were here, do pink floyd. Não por ser fácil, mas por ter ensaiado muito ela pra tocar pra uma pessoa que acabou indo embora.

Dedilhou evitando olhar pro violão. Em7, G, Em7, G, Em7, G, Em7, G, Em7, G. Arriscou a primeira parte: "So, so you think you can tell, Heaven from Hell, Blue skies from pain, Can you tell a green field, From a cold steel rail? A smile from a veil? Do you think you can tell?..." Sorriu de canto, ainda lembrava de boa parte da letra. Mas parou de tocar de súbito. Torceu um pouco o nariz. Errou duas notas. Teve certeza disso. Suspirou olhando o prédio em frente. Um rapaz estava a janela lhe assistindo tocar. Sentiu o rosto queimar por completo. Lá embaixo a avenida movimentada não deixava que trocassem a menor palavra, mesmo gritando. Porém ela estava envergonhada. Pois tinha trancado a porta do quarto para que ninguem a visse tocar e agora um completo estranho a via tocar?

Saiu da janela e guardou o violão. Se deitou pensando na possibilidade de alguem lhe ouvir tocar, uma especie de admirador. Mesmo errando as notas. Ponderou dele nem ter ouvido-a tocar e só ficou olhando ela, a pouca beleza que ela julgava ter. Foi se aquietando, sorriu de canto com esse pensamento e acabou adormecendo.

O dia seguinte passou voando. Tudo que ela queria era voltar à janela e tocar para o estranho. Por mais que esse pensamento a assustasse um pouco ainda estava na segurança da sua casa. Os dias foram se seguindo, um após o outro, ela treinando novas melodias e o espectador calado apenas sorria postado frente à janela a vendo tocar. De quando em quando ela errava uma nota em uma música que já havia tocado perfeitamente afim de ver a reação dele. E, dia após dia foi se deixando encantar pelo espectador. Porém - sempre há um porém - ela foi se interessando pela aventura. Então um dia, um sábado ensolarado, atravessou a rua munida do violão e da coragem. Chegaria na portaria e diria o quê? "o rapaz daquela janela ali...?" isso. A ideia era meio idiota mas poderia funcionar.

Entrou no prédio, explicou a história pro porteiro. Ele, educadamente, ouviu atento e ambos foram para a rua. Ela indicou a janela e viu o porteiro fazer uma cara um pouco torta. Será que o rapaz não estava em casa? Estava. Ela perguntou se poderia ir vê-lo. O porteiro analisou ela de cima a baixo. calça jeans, uma blusa de mangas curtas, cabelo solto, tênis all star no pé. No ombro o violão dentro da bolsa, na mão diversas revistas e partituras.

Com o coração na mão ela entrou no elevador. Apartamento 800. Oitocentos. Suspirou caminhando decidida até a porta. Fez um pequeno sinal da cruz se benzendo. Tocou a campainha. "Só um minuto" disse a voz lá de dentro. E se ele fosse casado? Burra. Estava arriscando muito em vir ali. Pensou em dar meia volta e sair, aproveitar que o elevador ainda estava no seu andar. "Quem é?" perguntou a voz que ela julgou ser dele. Como ela deveria se apresentar? Seu nome? Não... teve uma ideia, um lampejo rápido. "A moça do violão, do prédio em frente...". A porta se destrancou imediatamente. Ele sorriu. Ela sorriu. "Entre, sente-se" ele disse. Ela agradeceu e entrou, dando uma rapida olhada em tudo, nada que denunciasse que ele era casado ou algo do tipo. Menos mal. Ela se sentou na beirada de um sofá grande, desses de três lugares. Ele se aproximou. Ela notou que ele caminhava com os braços um pouco afastados do corpo. Como se tateasse as coisas. Até que enfim ele se sentou na outra ponta. Distante não mais que alguns metros dela. "Posso?" ele disse esticando as mãos à ela. "Tocar?" ela indagou-lhe. "Sim, tocar seu rosto..." foi só então que ela notou que ele era cego. E assim estão até hoje. Ele senta-se a não mais que alguns metros dela e ela toca músicas para alegrar os dias dele, que agora não são mais escuros. Tem a luz da voz, da música dela.

Um comentário:

ઇ‍ઉ disse...

A maioria dos seus "rabiscos" me tocam de uma forma impossível de descrever. Tento por algumas vezes te "devolver" a mesma emoção mas... tão certo quanto 2 e 2 resulta num número par, sei que não consigo. Mas este (...), este de alguma maneira conseguiu de um jeito nada peculiar, resgatar da minha alma, sentimentos que "outra vez" não conseguirei explicar. Seria como a emoção de um músico ao resgatar suas melhores partituras do meio de uma devastadora enchente. A história dessa garota me despertou similaridades tanto quanto uma certa inveja. A paixão pela canção, a dificuldade em respirar por só ver o 8, a vontade de ir adiante, guiada pela emoção do acontecer, esquecendo-se por um momento das razões que realmente movem o mundo, a vida, o destino. Vou parar por aqui, a minha analogia sobre o que senti, pode estragar o que realmente você quis passar com isso tudo (é que fica um pouco difícil pra mim, não pensar que de certa maneira, existem traços de mim nisso tudo, e ainda mais difícil aceitar que não, não tem a ver comigo isso tudo, rs). Enfim, termino dizendo que... Embora eu não seja redatora ou editora ou escritora, esse realmente foi um dos textos, senão o mais INCRÍVEL que já li.