quinta-feira, 5 de março de 2015

Álibi III

Mesmo sendo extremamente racional, às vezes Sophia agradecia aos céus. No passado, durante sua infância seus pais a obrigavam a ir para a igreja todo domingo, sempre com sua melhor roupa, não que ela achasse ruim isso, era um momento em que as brigas entre seus pais cessavam. Aos doze ela desistiu de seguir os passos deles e parou de ir à igreja. Gostava de passar em frente ao prédio físico para admirar, tinha por gosto deitar em um dos bancos do fundo da Catedral de Nossa Senhora da Luz, depois da aula. Era isso ou aturar a gritaria e os palavrões em casa.

O agradecimento referido anteriormente foi justamente pela escala de plantão de seu noivo cair na data que tinha que seguir sua missão. Na hora que saiu da faculdade entendeu porque o Batman gostava tanto da noite: ela era um ótimo disfarce. Entrou na garagem do prédio e passou pela única câmera na entrada, a negligência em colocar mais câmeras aqui era algo que, em todas as reuniões de condomíniro, era colocado em pauta e ninguem resolvia. Sorte de uns, azar de outros. Aproveitou a situação para trocar de roupa, colocando uma saia curta e uma peruca loira, espirrou vodka pelo corpo afim de seu algoz achar que ela era uma vitma indefesa. Essa era uma de suas fantasias: parecer indefesa, a espera de um cavaleiro de capa e um cavalo branco. Claro que essa fantasia já não cabia mais nela, mas um dia ainda queria um cavalo branco... quem sabe um dia, não? Saiu por uma porta dos fundos da garagem e, dali, para a rua. Calçou a sandália de salto alto que havia ganho de alguem... quando foi? Amigo secreto da turma de faculdade talvez? Provavelmente.

Com certa dificuldade por andar de salto alto - talvez sua única da noite - chegou ao ponto onde veria o alvo. Da pequena bolsa tirou o cartão dele. Curiosamente era a primeira vez que via o nome dele. Alfredo. Nome estranho. Quer dizer, talvez estranho para qualquer outra profissão, mas, para taxista, era um nome que encaixava bem com a função, embora não acreditasse nisso de nome-para-essa-ou-aquela-profissão. Deu de ombros e, do número do chip de celular roubado que comprou mais cedo no centro, discou para ele. Deu o endereço, disfarçou a voz para parecer embriagada. Assim que ele chegou sorriu de canto e disse que preferia sentar atrás pois estava um pouco zonza.

Passou o endereço de onde queria ir. Uma rua distante dez quarteirões dali. Claro, era perigoso ela agir tão perto de casa, mas... e onde ficaria a dose de adrenalina? Conhecia a rua o suficiente para saber que, além de sair da rota várias vezes tornando a viagem mais cara, ele rumava para uma rua escura. Esse era o modus operandi dele: ficar em portas de boates, bares, levando vitmas para ruas escuras. Minutos antes dele para, Sophia abriu a bolsa como se buscasse a carteira. Ele, notando a inabilidade dela, sorria de soslaio, ela, só com o canto do olho notava pelo retrovisor o olhar de caçador. Devia ter feito teatro, Sophia fingia o olhar de caça muito bem.

Da bolsa saiu um pedaço de corda, dessas cordas náuticas que Sophia havia achado no lixo de seu prédio. Quer coisa melhor? Qualquer fibra que ficasse teria uma origem absurda: corda náutica que era vendida em, pelo menos, duzentas lojas apenas num raio de dez quilômetros. Se a busca expandisse para mais, vinte quilômetros a quantidade de lojas passaria fácil de mil. Quer álibi melhor? Agora veio uma dúvida: direita para a esquerda ou esquerda para a direita? Melhor direita para esquerda, a mão direita é mais forte para arremessar a corda para a mão esquerda, embora o lado esquerdo tenha a proteção das trevas e a mão direita tenha mais habilidade em pessoas destras, como Sophia. Decidiu pelo lado esquerdo.

Com a sensação de que era mais fácil do que parecia pediu que o algoz lesse o preço no taximêtro. Enquanto a visão dele se fixou no pequeno aparelho de números vermelhos ela passou a corda de um lado pro outro puxando em seguida. Com o joelho empurrou o banco para frente afim de agilizar o processo. Como um peixe fisgado ele se debatia tentando a todo custo se soltar. Tentou, em vão, tocar a buzina como se pedisse socorro. Os braços ficaram curtos. Tentou jogar o braço para trás afim de tentar bater no braço que segurava o pedaço de corda. Tudo inútil. Em menos de cinco minutos a traqueia esmagada deixou de passar ar, as artérias do pescoço deixaram de levar sangue para o cérebro. Fim. Os braços amoleceram. O movimento, outrora frenético, cessou. Por via das dúvidas segurou mais alguns instantes. Garantir nunca é demais.

Como se encenasse um assalto levou todo o dinheiro que tinha no porta-luvas. Deviam ter uns duzentos e poucos reais. Caminhou para distante do taxi enquanto repassava a lista de lugares onde tocou e onde limpou: maçanetas, banco, apoio de braço... tudo limpo com o bom e velho hipoclorito de sódio. Desligou os faróis, o motor... quanto mais tempo demorasse para acharem tudo, melhor. Como boa diretora de suas próprias cenas de vida, dona de seu próprio destino, já tinha deixado uma muda de roupa em uma lixeira próxima. Enquanto se trocava, tirava a maquiagem pesada e colocava um tênis, ficou pensando em "ser dona do próprio destino". Parecia coisa do velho oeste. Jogou cada peça do disfarce em um lugar diferente, a peruca, depois de lavada com o mesmo liquido de cheiro forte, seguiu o mesmo caminho das outras peças, a única excessão coube à sandália que seria lavada e emprestada a qualquer amiga ou colega que precisasse tão logo fosse possível. Em um passo rápido caminhou até a garagem do prédio sem se preocupar, na rua haviam duas dúzias de pessoas e três dúzias de carros. Entrou pela mesma brecha que saiu, abriu o porta-malas e, de lá, pegou a bolsa onde guardava o notebook e uma sacola com compras. Depois de um banho rápido resolveu assistir um filme até pegar no sono. Por que não um faroeste? Perfeito. Sexta-feira faria uns tacos, compraria uma tequila e, com seu noivo, assistiriam Gran Torino. Não era um faroeste, mas era do mestre de faroestes. Com esse pensamento em mente deixou-se levar nos braços de Morfeu.

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