sábado, 8 de fevereiro de 2014

Travessia

Eu não vim nos navios, eu não passei a necessidade que meus avós, bisavós passaram ao chegar aqui, nessa terra de mata fechada. Nessa selva coalhada de animais ferozes, de doenças que lá, no velho continente, não existiam. Dos poderosos de coisa nenhuma ganharam, quando muito, dois pacotes de prego, punhados de sementes variadas e mais nada. Mas o preço era alto demais: Tiveram seus nomes, sobrenomes anotados por algum funcionário preguiçoso que os mutilou completamente, o quê um dia foi o símbolo máximo de um clã, de uma família agora era algo diferente, em letras diferentes, em sotaques diferentes. Subiram a gigante serra do mar que, na época, era algo feito de terra batida, quando muito um caminho onde passava - raspando nos galhos das árvores - uma carroça que sacolejava mais que o navio que enfrentou o mar.

Ao chegar na capital a coisa não melhorava. Havia um trem, disseram, um trem que levava até metade do caminho, de lá em diante haveria um barco que levaria à uma cidade. Uma cidade. Todos aqueles homens e mulheres, muitos que abandonaram suas casas vendo a eminência da guerra galgando a passos largos, vindo depressa à soleira das portas. Nessa hora ninguém é covarde se foge afim de sobreviver. Jamais. Ao contrário: tem de ter muita coragem em sair do seu país e ir desbravar algo completamente desconhecido.

O trem lhes custou o resto de suas últimas moedas. Agora estavam apenas com as sementes e o pacote de pregos. Decidiram descer o rio. Acharam um campo que falaram ser fértil, ser tranquilo e o clima lembrar bastante a velha terra amada. Por sorte - ou até mesmo por uma total coincidência - alguns haviam trazido em suas malas algo além de roupas, esperanças e sonhos de recomeço. Haviam trazido coisas práticas como martelos, serrotes... logo após as primeiras árvores derrubadas notaram que os pregos que haviam ganho seriam insuficientes. Rapidamente desenvolveram formas de construir sem usar tantos pregos, logo construiram pequenas casas, foram ocupando subempregos, alguns progrediram, mas o lugar ainda era completamente diferente. A língua, barreira na negociação do nome agora era barreira feroz na hora de se ambientar àquele lugar. Não posso dizer se passaram fome, sede... mas provações, sei que passaram. E superaram.

E hoje, quando olho meu sobrenome na identidade, sinto orgulho, não sou um décimo da garra e da força, a covardia corajosa, a capacidade de se adaptar a algo completamente insosso, algo sem precedentes. Aposto que os ancestrais de meus ancestrais não esperavam por essa mudança, esperavam que toda a família ficasse unida pelos séculos que viriam a frente. Não ocorreu, houve a divisão. Talvez, se não tivesse isso, eu estaria nas ruas protestando. Talvez a família nem existisse mais... pensar nisso me trás uma saudade de meu avô paterno que, pasmem, não conheci e ainda assim sinto falta! Obrigado pela covardia corajosa de vir rumo ao desconhecido! Obrigado por terem dado a seus descendentes o orgulho que pulsa firme em meu peito. Sim, sou brasileiro, mas também tenho uma pontinha de coração batendo lá em minha eterna - ainda que eu não tenha pisado lá - pátria, minha Ucrânia! Chy Bude Ukraina!

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